Formação sobre história e culturas indígenas para professores/as
Os professores da Rede Estadual de Pernambuco darão início neste mês de março a processo de formação específico sobre a temática indígena.
A iniciativa da Secretaria de Educação do Governo do Estado conta com parceria do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) e tem como objetivo incluir a história e culturas indígenas nos Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) das escolas, conforme determina a Lei 11.645/2008, válida para estabelecimentos de ensino infantil, fundamental e médio, sejam públicos ou privados.
A formação será realizada em forma de seminário itinerante, que passará pelas micro-regiões do Estado. Em cada local, o seminário tem a duração de um dia e tem como tema “Os Povos Indígenas de Pernambuco e a Lei 11.645/2008”.
O primeiro seminário será realizado na micro-região Recife Sul no dia 17 de março, a partir das 8h, no Hotel Canarius, em Boa Viagem, com cerca de 100 professores e professoras.
Com a participação da técnica em educação indígena do CCLF Patrícia Fortes e da professora indígena Pretinha Truká (integrante da Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco), o seminário irá traçar um panorama geral das 11 etnias indígenas do estado, apresentando um pouco das culturas e histórias de luta e resistência destes povos.
Na outra parte do seminário, haverá exposição “A temática indígena no Projeto Político-Pedagógico” e momento para a socialização de práticas pedagógicas.
Educação, raça e etnia – Através de projetos com parceiros e iniciativas independentes, o CCLF vem realizando reflexões, debates, formações e lançando publicações sobre as relações étnico-raciais nas práticas educativas e sobre a construção de Projetos Político-Pedagógicos diferenciados para comunidades quilombolas e Povos indígenas.
Em outubro de 2009, o CCLF realizou, em parceria com a Save the Children – Reino Unido e Centro de Referência Integral de Adolescentes (CRIA/ Salvador-BA), o seminário “Educação e Relações Étnico-Raciais – os desafios e políticas de propostas interculturais”.
Em setembro e novembro de 2009, o CCLF lançou de forma independente ciclo de cursos, que teve foco na ampliação de conhecimento dos participantes para a inclusão de conteúdo sobre as Histórias e Culturas Afro-Brasileira e Indígenas nos currículos escolares, conforme determina a Lei 11.645/2008.
http://www.concepto.com.br/cclf/admin/modules/noticia/?id=770
quarta-feira, 17 de março de 2010
domingo, 14 de março de 2010
Índios nas prateleiras
Guilherme Jeronymo
São nove horas da manhã em Barra do Garças, sul do Mato Grosso, fronteiriça com Aragarças (GO). No centro da cidade, próximo do rio que divide os dois estados, fica uma pequena loja de CDs, a Brassom, há 23 anos na cidade, sob a batuta de José “Juca” de Oliveira. Pequena, a loja trabalha com todo tipo de música: religiosa, MPB, sertaneja – aliás, seu carro chefe – e, num diferencial das outras lojas da cidade, música indígena.
Os mais de mil CDs e DVDs de produção indígena disponíveis, em sua imensa maioria Xavante, são o ponto alto de 10 anos de distribuição das produções voltadas à etnia. Juca começou distribuindo fitas K7, trazidas por Fabiano, e depois por outros artistas da etnia. Desde 2004 as fitas passaram a ser trocadas por CDs, e não demorou muito por DVDs, gravados em estúdios caseiros. Hoje, muitas das cópias tem o “selo” da Brassom, que reproduz e imprime as capas das mídias. “O negócio vai bem. Do dia 2 ao dia 10 aqui (em Barra) parece uma aldeia, tem muitos índios, e vendemos bastante”, diz Juca.
As produções vem principalmente do sul e leste do estado, gravadas em estúdios caseiros ou em cidades como Poxoréu, Rondonópolis e Aragarças. As músicas variam, dos tradicionais cantos da etnia, cerimoniais – os mesmos que ganharam mundo nas gravações da banda Sepultura, em seu álbum Roots (1996) – até um “pop” da etnia, com a produção de músicas com bases rítmicas e letras tradicionais mas utilizando instrumentos “ocidentais”, assim como com bases rítmicas mixadas e temas não tradicionais, como amor, defesa às crianças, temas ambientalistas e músicas de louvor cristãs, além de adaptações de músicas tradicionais andinas.
Dos CDs musicais à disposição na Brassom, a maioria é de abordagens “pop”. Entre os DVDs, a vertente documental e testemunhal predominam, registrando principalmente as competições esportivas e festas, mas também um caso policial – o DVD “luta e liberdade do jovem Xavante”, que narra um entrevero entre a polícia de Primavera do Leste e Xavantes por causa de um jovem preso injustamente, o que mobilizou diversos indígenas da etnia, muitos pintados e armados para a guerra – e um título religioso, de apresentação do evangelho cristão.
A difusão de CDs e DVDs é feita sem que se repasse lucro aos indígenas, que não cobram sua participação nos ganhos. Como toda a produção é feita na língua da etnia – do tronco Jê – basicamente toda a produção é distribuída entre eles, e os ganhos, R$ 6,00 para os CDs e R$ 10,00 para os DVDs, cobrem os custos da loja. Além das produções da etnia também são comercializados CDs de música andina e de tribos dos Estados Unidos, trazidas pelos próprios Xavantes – “Eles usam muito estas músicas para compor as deles. Este quem me trouxe foi o Agnelo (da aldeia São Marcos)”, conta o comerciante.
Embora seja a maior do gênero na região, a Brassom não é a única a trabalhar com as músicas indígenas. Em Primavera do Leste (MT) a CD Show vende as músicas, gravadas em CDs, em formato MP3 ou WMA. De forma semelhante à Brassom, a venda aos índios não é o carro chefe da loja, que se mantém com o sertanejo, e não copia os DVDs – houve discussão com um indígena, que aparecia em um dos DVDs e não gostou de saber que eram vendidos livremente. Hoje os empregados da loja apenas revendem os DVDs trazidos pelos Xavantes. Apesar da ausência das mídias físicas há mais de 760 músicas nos computadores da loja, e as vendedoras montam os CDs de acordo com o pedido do cliente, a R$ 5,00 a mídia.
Para o professor Massimo Canevacci, da Universidade La Sapienza, de Roma, que estudou os rituais e representação das etnias Xavante e Bororo, a constituição de um mercado informal de autorepresentação apresenta um potencial fantástico – “Às vezes a TV publica e também a Rede Globo apresentam a cultura indígena através do panorama ecológico da defesa da natureza, em estilo de ‘publicidade National Geographic’, uma Playboy da ‘natureza’, insuportável”.
Segundo o estudioso, a autorepresentação através de mídias sonoras e visuais não é novidade na etnia, datando de meados da década de 1990, e muito impulsionada pelo digital, tanto em sua captação quanto em sua edição e produção, e são fundamentais – “Neste contexto de rápida mudança, crescimento demográfico, instrução autônoma, etc, as novas tecnologia digital encarnam a fratura que se apresenta na vida quotidiana e também na epistemologia indígena”, completa Canevacci.
Revista Eletrônica Cultura e Mercado
http://www.culturaemercado.com.br/relatos/indios-nas-prateleiras/
Guilherme Jeronymo
São nove horas da manhã em Barra do Garças, sul do Mato Grosso, fronteiriça com Aragarças (GO). No centro da cidade, próximo do rio que divide os dois estados, fica uma pequena loja de CDs, a Brassom, há 23 anos na cidade, sob a batuta de José “Juca” de Oliveira. Pequena, a loja trabalha com todo tipo de música: religiosa, MPB, sertaneja – aliás, seu carro chefe – e, num diferencial das outras lojas da cidade, música indígena.
Os mais de mil CDs e DVDs de produção indígena disponíveis, em sua imensa maioria Xavante, são o ponto alto de 10 anos de distribuição das produções voltadas à etnia. Juca começou distribuindo fitas K7, trazidas por Fabiano, e depois por outros artistas da etnia. Desde 2004 as fitas passaram a ser trocadas por CDs, e não demorou muito por DVDs, gravados em estúdios caseiros. Hoje, muitas das cópias tem o “selo” da Brassom, que reproduz e imprime as capas das mídias. “O negócio vai bem. Do dia 2 ao dia 10 aqui (em Barra) parece uma aldeia, tem muitos índios, e vendemos bastante”, diz Juca.
As produções vem principalmente do sul e leste do estado, gravadas em estúdios caseiros ou em cidades como Poxoréu, Rondonópolis e Aragarças. As músicas variam, dos tradicionais cantos da etnia, cerimoniais – os mesmos que ganharam mundo nas gravações da banda Sepultura, em seu álbum Roots (1996) – até um “pop” da etnia, com a produção de músicas com bases rítmicas e letras tradicionais mas utilizando instrumentos “ocidentais”, assim como com bases rítmicas mixadas e temas não tradicionais, como amor, defesa às crianças, temas ambientalistas e músicas de louvor cristãs, além de adaptações de músicas tradicionais andinas.
Dos CDs musicais à disposição na Brassom, a maioria é de abordagens “pop”. Entre os DVDs, a vertente documental e testemunhal predominam, registrando principalmente as competições esportivas e festas, mas também um caso policial – o DVD “luta e liberdade do jovem Xavante”, que narra um entrevero entre a polícia de Primavera do Leste e Xavantes por causa de um jovem preso injustamente, o que mobilizou diversos indígenas da etnia, muitos pintados e armados para a guerra – e um título religioso, de apresentação do evangelho cristão.
A difusão de CDs e DVDs é feita sem que se repasse lucro aos indígenas, que não cobram sua participação nos ganhos. Como toda a produção é feita na língua da etnia – do tronco Jê – basicamente toda a produção é distribuída entre eles, e os ganhos, R$ 6,00 para os CDs e R$ 10,00 para os DVDs, cobrem os custos da loja. Além das produções da etnia também são comercializados CDs de música andina e de tribos dos Estados Unidos, trazidas pelos próprios Xavantes – “Eles usam muito estas músicas para compor as deles. Este quem me trouxe foi o Agnelo (da aldeia São Marcos)”, conta o comerciante.
Embora seja a maior do gênero na região, a Brassom não é a única a trabalhar com as músicas indígenas. Em Primavera do Leste (MT) a CD Show vende as músicas, gravadas em CDs, em formato MP3 ou WMA. De forma semelhante à Brassom, a venda aos índios não é o carro chefe da loja, que se mantém com o sertanejo, e não copia os DVDs – houve discussão com um indígena, que aparecia em um dos DVDs e não gostou de saber que eram vendidos livremente. Hoje os empregados da loja apenas revendem os DVDs trazidos pelos Xavantes. Apesar da ausência das mídias físicas há mais de 760 músicas nos computadores da loja, e as vendedoras montam os CDs de acordo com o pedido do cliente, a R$ 5,00 a mídia.
Para o professor Massimo Canevacci, da Universidade La Sapienza, de Roma, que estudou os rituais e representação das etnias Xavante e Bororo, a constituição de um mercado informal de autorepresentação apresenta um potencial fantástico – “Às vezes a TV publica e também a Rede Globo apresentam a cultura indígena através do panorama ecológico da defesa da natureza, em estilo de ‘publicidade National Geographic’, uma Playboy da ‘natureza’, insuportável”.
Segundo o estudioso, a autorepresentação através de mídias sonoras e visuais não é novidade na etnia, datando de meados da década de 1990, e muito impulsionada pelo digital, tanto em sua captação quanto em sua edição e produção, e são fundamentais – “Neste contexto de rápida mudança, crescimento demográfico, instrução autônoma, etc, as novas tecnologia digital encarnam a fratura que se apresenta na vida quotidiana e também na epistemologia indígena”, completa Canevacci.
Revista Eletrônica Cultura e Mercado
http://www.culturaemercado.com.br/relatos/indios-nas-prateleiras/
Uma viagem entre o real e a realidade
Limbo
Francisco Bosco
O homem navegava na valeta. Seu sorriso beatífico assegurava que nada mais era necessário, mas seu amigo, de pé diante dele, instava: "Vem, vem, a felicidade está além, a dois passos, vem até a esquina da rua. Coragem, amigo, diz às tuas pernas que satisfaçam o teu pensamento". O outro, porém, com o espírito relaxado, nonchalante, pedia apenas que o deixassem em paz, pois "a margem do desgosto desapareceu suficientemente por trás das névoas benéficas; nada mais tenho a pedir ao céu do sonho".
O agente de tamanha graça fora o vinho, das bebidas alcoólicas, talvez, a mais amolecente, pois torna tenros corpo e espírito. Seu dom é mesmo o da graça, no sentido exato da palavra: suprime o esforço, suspende as resistências. Do quê? Da realidade. Com efeito, a anedota acima, contada por Baudelaire em sua comparação entre o vinho e o haxixe, toca no centro da questão. O vinho, como os alcoóis de modo geral, opera dentro da realidade, amaciando-a, afrouxando as cordas em que todo sujeito, mais ou menos neurótico, vive cotidianamente amparado e enlaçado. A realidade protege - do Nada - e oprime (o inferno é o outro). O álcool a dilui, dissipa sua autoridade, cobre com algodões, "névoas benéficas", sua excessiva claridade. Abre-se aí uma distância dentro da realidade, e a margem que fica para trás é a do desgosto da própria realidade. Essa é a ação positiva do álcool, the power of positive drinking, como disse Lou Reed. Como todas as forças, o álcool também está submetido à lei dialética; suas ações maléficas são o revirar-se desse mesmo princípio de abrandamento da realidade, quando levado ao excesso: a perda progressiva do compromisso com o princípio da realidade, no alcoolismo, ou as atitudes que infringem demasiadamente as balizas morais a que prestamos contas uma vez a realidade retome as rédeas. Caso banal da ressaca moral.
Dois paradigmas
Mas não nos afastemos do centro. Não inaugurei esse pensamento com o célebre texto de Baudelaire por acaso. Essa primeira parte dos Paraísos Artificiais compara dois agentes, o vinho e o haxixe, duas forças a desencadear processos fundamentalmente diferentes. É aqui que quero intervir: penso que a diferença em jogo reside no modo como esses dois agentes alteram a relação do sujeito com a realidade, e esses dois modos permitem, por sua vez, estabelecer dois grandes paradigmas, em que se pode alocar cada droga, de acordo, como disse, com sua maneira de alterar, no sujeito, a experiência da realidade.
Assim, os alcoóis todos se situam no campo do abrandamento da realidade (e no limite, no alcoolismo, num abandono das negociações com o princípio de realidade; à vigência, incontrastada, do princípio do prazer, chama-se precisamente vício). A cocaína pertence ao mesmo paradigma. Sua alteração da experiência da realidade não produz os mesmos efeitos que o álcool: ela acelera, dispara, mecaniciza - mas se trata ainda de uma modificação dentro da realidade. A cocaína não suaviza a realidade, mas energiza o sujeito de tal forma que ele se sente um pouco acima dela. Sua aleivosia vem daí: cada vez que seu efeito diminui, o sujeito, desabando de seu pedestal de pó, ingere outra fileira para subir novamente, e assim durante horas; quando tudo se acaba, nota-se, como no célebre samba, que "pra subir você desceu", e agora deve enfrentar uma temporada a uns 500 metros abaixo do nível da realidade, onde a angústia é proporcional à velocidade e à profundidade da descida. A cocaína tem um espírito maligno de prestamista: empresta euforia a juros exorbitantes. E não há como escapar ao credor. Como sentencia a outra canção, que lhe imita a voz triste, é só "monotonia da loucura e morte".
O álcool cobre de algodões ou lubrifica a realidade, para diminuir sua aspereza. O sujeito se sente mais desimpedido. A cocaína lança-o numa montanha-russa para cima e para baixo do nível normal de sua realidade. São drogas da realidade.
Mas há outro paradigma, outra família de drogas. Essas não são drogas da realidade. Justamente, são drogas (o haxixe, o LSD, o chá de cogumelos, a ayahuasca) que atacam, questionando-a, revelando sua ilusão, a realidade. "O vinho torna bom e sociável", descreve Baudelaire, mas "o haxixe é isolante". Nessa diferença se situa o âmago da diferença que desejo delinear. A realidade é por excelência social; ela é o conjunto, complexo, contraditório e imensurável, das representações de uma coletividade. As drogas da realidade são, consequentemente, as drogas da sociabilidade. Ingere-se-as para melhor se relacionar com o outro. Mas as outras drogas, as "isolantes", não. Muito mais radicais, elas lançam sobre o outro a dúvida quanto à sua própria existência. É nessa dúvida que se passa toda a experiência.
Voltemos a Baudelaire, pois tudo está lá, basta saber ler. "Os sentidos tornam-se de uma finura e de uma acuidade extraordinárias", o sujeito se surpreende em meio a uma "estupefação geral de todo o vosso ser". Por quê?
Deslocamento do sujeito
Que se diga de uma vez: essas drogas, atacando a realidade em sua própria existência, deslocam o sujeito como que para fora dela. Ora, a rigor, fora da realidade é o real. E é por isso que muitos usuários de drogas dessa espécie, por meio do uso intenso e extenso, acabaram passando de vez para o outro lado, psicotizando, perdendo o contato com a realidade. É o momento em que Arnaldo Baptista procura um comandante para pilotar seu disco-voador. Mas, em casos de menor radicalidade, o usuário se vê "como que" fora da realidade. A realidade se lhe aparece como uma ilusão, mas, finda essa experiência, retomará sua existência sólida, incontestada, natural.
Durante a experiência, o sujeito vê a realidade à sua frente, como um teatro. Ele, contudo, se mantém consciente; "é certo que conservais a faculdade de vos observardes", mas, justamente, trata-se de uma hiperconsciência da realidade, isto é, de uma consciência daquilo de que normalmente somos inconscientes, por nela estarmos imersos. O sujeito não perde sua linguagem, não perde o simbólico, mas é como se o simbólico se descolasse de si mesmo. Pode-se então ver o simbólico, ver o outro. É isso, creio, que um usuário de LSD estava a dizer quando contou que pôde segurar seu ego junto à cintura, como quem segura um capacete. Uma distância se abre. O corpo pode ser percebido, em sua totalidade, como um efeito de neuroses. Suspensa a alienação da realidade, pode-se sentir a neurose fisicamente. Assim, além da realidade e aquém do real, como que consciente ao quadrado, flutuando entre duas impossibilidades, a experiência do sujeito se desenrola numa espécie de limbo.
Esse limbo é um lugar de extrema sensibilidade, como descreve Baudelaire, precisamente porque suspende a realidade. A realidade automatiza; é o que reconhecemos habitualmente, por mais extraordinárias que sejam suas operações internas (como a da arte, por exemplo). Mas, suspensa, a realidade cede lugar à estranheza absoluta, à "estupefação" que é o seu próprio espetáculo como precária invenção. Então, não é algo na realidade que é estranho, uma parte sua qualquer que escapa à gramática habitual. Mas é a própria realidade, em sua totalidade, em seu princípio, que é estranha, abolido seu caráter de natureza. Nessa estranheza absoluta, os "sentidos tornam-se de uma acuidade extraordinária", mas, ao mesmo tempo, "sobreabundantes a alegria, o bem-estar, também são imensamente profundas a dor e a angústia". Sim, tudo isso gira no mesmo vórtice, pois a suspensão da realidade é o teatro e o vazio, o milagre e o caos. A realidade revela-se uma mentira: um homem sensato "parece-vos o mais doido e o mais ridículo de todos os homens" -, mas uma mentira necessária. Para além dela é a verdade, isto é: o nada.
REVISTA CULT -
http://revistacult.uol.com.br/novo/news.asp?edtCode=0454AE4B-8C62-47BC-82AF-F04C2D5C0E7F&nwsCode=2579CC2F-97B7-4A3C-91C9-AAC9BAA4AB2D
Limbo
Francisco Bosco
O homem navegava na valeta. Seu sorriso beatífico assegurava que nada mais era necessário, mas seu amigo, de pé diante dele, instava: "Vem, vem, a felicidade está além, a dois passos, vem até a esquina da rua. Coragem, amigo, diz às tuas pernas que satisfaçam o teu pensamento". O outro, porém, com o espírito relaxado, nonchalante, pedia apenas que o deixassem em paz, pois "a margem do desgosto desapareceu suficientemente por trás das névoas benéficas; nada mais tenho a pedir ao céu do sonho".
O agente de tamanha graça fora o vinho, das bebidas alcoólicas, talvez, a mais amolecente, pois torna tenros corpo e espírito. Seu dom é mesmo o da graça, no sentido exato da palavra: suprime o esforço, suspende as resistências. Do quê? Da realidade. Com efeito, a anedota acima, contada por Baudelaire em sua comparação entre o vinho e o haxixe, toca no centro da questão. O vinho, como os alcoóis de modo geral, opera dentro da realidade, amaciando-a, afrouxando as cordas em que todo sujeito, mais ou menos neurótico, vive cotidianamente amparado e enlaçado. A realidade protege - do Nada - e oprime (o inferno é o outro). O álcool a dilui, dissipa sua autoridade, cobre com algodões, "névoas benéficas", sua excessiva claridade. Abre-se aí uma distância dentro da realidade, e a margem que fica para trás é a do desgosto da própria realidade. Essa é a ação positiva do álcool, the power of positive drinking, como disse Lou Reed. Como todas as forças, o álcool também está submetido à lei dialética; suas ações maléficas são o revirar-se desse mesmo princípio de abrandamento da realidade, quando levado ao excesso: a perda progressiva do compromisso com o princípio da realidade, no alcoolismo, ou as atitudes que infringem demasiadamente as balizas morais a que prestamos contas uma vez a realidade retome as rédeas. Caso banal da ressaca moral.
Dois paradigmas
Mas não nos afastemos do centro. Não inaugurei esse pensamento com o célebre texto de Baudelaire por acaso. Essa primeira parte dos Paraísos Artificiais compara dois agentes, o vinho e o haxixe, duas forças a desencadear processos fundamentalmente diferentes. É aqui que quero intervir: penso que a diferença em jogo reside no modo como esses dois agentes alteram a relação do sujeito com a realidade, e esses dois modos permitem, por sua vez, estabelecer dois grandes paradigmas, em que se pode alocar cada droga, de acordo, como disse, com sua maneira de alterar, no sujeito, a experiência da realidade.
Assim, os alcoóis todos se situam no campo do abrandamento da realidade (e no limite, no alcoolismo, num abandono das negociações com o princípio de realidade; à vigência, incontrastada, do princípio do prazer, chama-se precisamente vício). A cocaína pertence ao mesmo paradigma. Sua alteração da experiência da realidade não produz os mesmos efeitos que o álcool: ela acelera, dispara, mecaniciza - mas se trata ainda de uma modificação dentro da realidade. A cocaína não suaviza a realidade, mas energiza o sujeito de tal forma que ele se sente um pouco acima dela. Sua aleivosia vem daí: cada vez que seu efeito diminui, o sujeito, desabando de seu pedestal de pó, ingere outra fileira para subir novamente, e assim durante horas; quando tudo se acaba, nota-se, como no célebre samba, que "pra subir você desceu", e agora deve enfrentar uma temporada a uns 500 metros abaixo do nível da realidade, onde a angústia é proporcional à velocidade e à profundidade da descida. A cocaína tem um espírito maligno de prestamista: empresta euforia a juros exorbitantes. E não há como escapar ao credor. Como sentencia a outra canção, que lhe imita a voz triste, é só "monotonia da loucura e morte".
O álcool cobre de algodões ou lubrifica a realidade, para diminuir sua aspereza. O sujeito se sente mais desimpedido. A cocaína lança-o numa montanha-russa para cima e para baixo do nível normal de sua realidade. São drogas da realidade.
Mas há outro paradigma, outra família de drogas. Essas não são drogas da realidade. Justamente, são drogas (o haxixe, o LSD, o chá de cogumelos, a ayahuasca) que atacam, questionando-a, revelando sua ilusão, a realidade. "O vinho torna bom e sociável", descreve Baudelaire, mas "o haxixe é isolante". Nessa diferença se situa o âmago da diferença que desejo delinear. A realidade é por excelência social; ela é o conjunto, complexo, contraditório e imensurável, das representações de uma coletividade. As drogas da realidade são, consequentemente, as drogas da sociabilidade. Ingere-se-as para melhor se relacionar com o outro. Mas as outras drogas, as "isolantes", não. Muito mais radicais, elas lançam sobre o outro a dúvida quanto à sua própria existência. É nessa dúvida que se passa toda a experiência.
Voltemos a Baudelaire, pois tudo está lá, basta saber ler. "Os sentidos tornam-se de uma finura e de uma acuidade extraordinárias", o sujeito se surpreende em meio a uma "estupefação geral de todo o vosso ser". Por quê?
Deslocamento do sujeito
Que se diga de uma vez: essas drogas, atacando a realidade em sua própria existência, deslocam o sujeito como que para fora dela. Ora, a rigor, fora da realidade é o real. E é por isso que muitos usuários de drogas dessa espécie, por meio do uso intenso e extenso, acabaram passando de vez para o outro lado, psicotizando, perdendo o contato com a realidade. É o momento em que Arnaldo Baptista procura um comandante para pilotar seu disco-voador. Mas, em casos de menor radicalidade, o usuário se vê "como que" fora da realidade. A realidade se lhe aparece como uma ilusão, mas, finda essa experiência, retomará sua existência sólida, incontestada, natural.
Durante a experiência, o sujeito vê a realidade à sua frente, como um teatro. Ele, contudo, se mantém consciente; "é certo que conservais a faculdade de vos observardes", mas, justamente, trata-se de uma hiperconsciência da realidade, isto é, de uma consciência daquilo de que normalmente somos inconscientes, por nela estarmos imersos. O sujeito não perde sua linguagem, não perde o simbólico, mas é como se o simbólico se descolasse de si mesmo. Pode-se então ver o simbólico, ver o outro. É isso, creio, que um usuário de LSD estava a dizer quando contou que pôde segurar seu ego junto à cintura, como quem segura um capacete. Uma distância se abre. O corpo pode ser percebido, em sua totalidade, como um efeito de neuroses. Suspensa a alienação da realidade, pode-se sentir a neurose fisicamente. Assim, além da realidade e aquém do real, como que consciente ao quadrado, flutuando entre duas impossibilidades, a experiência do sujeito se desenrola numa espécie de limbo.
Esse limbo é um lugar de extrema sensibilidade, como descreve Baudelaire, precisamente porque suspende a realidade. A realidade automatiza; é o que reconhecemos habitualmente, por mais extraordinárias que sejam suas operações internas (como a da arte, por exemplo). Mas, suspensa, a realidade cede lugar à estranheza absoluta, à "estupefação" que é o seu próprio espetáculo como precária invenção. Então, não é algo na realidade que é estranho, uma parte sua qualquer que escapa à gramática habitual. Mas é a própria realidade, em sua totalidade, em seu princípio, que é estranha, abolido seu caráter de natureza. Nessa estranheza absoluta, os "sentidos tornam-se de uma acuidade extraordinária", mas, ao mesmo tempo, "sobreabundantes a alegria, o bem-estar, também são imensamente profundas a dor e a angústia". Sim, tudo isso gira no mesmo vórtice, pois a suspensão da realidade é o teatro e o vazio, o milagre e o caos. A realidade revela-se uma mentira: um homem sensato "parece-vos o mais doido e o mais ridículo de todos os homens" -, mas uma mentira necessária. Para além dela é a verdade, isto é: o nada.
REVISTA CULT -
http://revistacult.uol.com.br/novo/news.asp?edtCode=0454AE4B-8C62-47BC-82AF-F04C2D5C0E7F&nwsCode=2579CC2F-97B7-4A3C-91C9-AAC9BAA4AB2D
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