Índios nas prateleiras
Guilherme Jeronymo
São nove horas da manhã em Barra do Garças, sul do Mato Grosso, fronteiriça com Aragarças (GO). No centro da cidade, próximo do rio que divide os dois estados, fica uma pequena loja de CDs, a Brassom, há 23 anos na cidade, sob a batuta de José “Juca” de Oliveira. Pequena, a loja trabalha com todo tipo de música: religiosa, MPB, sertaneja – aliás, seu carro chefe – e, num diferencial das outras lojas da cidade, música indígena.
Os mais de mil CDs e DVDs de produção indígena disponíveis, em sua imensa maioria Xavante, são o ponto alto de 10 anos de distribuição das produções voltadas à etnia. Juca começou distribuindo fitas K7, trazidas por Fabiano, e depois por outros artistas da etnia. Desde 2004 as fitas passaram a ser trocadas por CDs, e não demorou muito por DVDs, gravados em estúdios caseiros. Hoje, muitas das cópias tem o “selo” da Brassom, que reproduz e imprime as capas das mídias. “O negócio vai bem. Do dia 2 ao dia 10 aqui (em Barra) parece uma aldeia, tem muitos índios, e vendemos bastante”, diz Juca.
As produções vem principalmente do sul e leste do estado, gravadas em estúdios caseiros ou em cidades como Poxoréu, Rondonópolis e Aragarças. As músicas variam, dos tradicionais cantos da etnia, cerimoniais – os mesmos que ganharam mundo nas gravações da banda Sepultura, em seu álbum Roots (1996) – até um “pop” da etnia, com a produção de músicas com bases rítmicas e letras tradicionais mas utilizando instrumentos “ocidentais”, assim como com bases rítmicas mixadas e temas não tradicionais, como amor, defesa às crianças, temas ambientalistas e músicas de louvor cristãs, além de adaptações de músicas tradicionais andinas.
Dos CDs musicais à disposição na Brassom, a maioria é de abordagens “pop”. Entre os DVDs, a vertente documental e testemunhal predominam, registrando principalmente as competições esportivas e festas, mas também um caso policial – o DVD “luta e liberdade do jovem Xavante”, que narra um entrevero entre a polícia de Primavera do Leste e Xavantes por causa de um jovem preso injustamente, o que mobilizou diversos indígenas da etnia, muitos pintados e armados para a guerra – e um título religioso, de apresentação do evangelho cristão.
A difusão de CDs e DVDs é feita sem que se repasse lucro aos indígenas, que não cobram sua participação nos ganhos. Como toda a produção é feita na língua da etnia – do tronco Jê – basicamente toda a produção é distribuída entre eles, e os ganhos, R$ 6,00 para os CDs e R$ 10,00 para os DVDs, cobrem os custos da loja. Além das produções da etnia também são comercializados CDs de música andina e de tribos dos Estados Unidos, trazidas pelos próprios Xavantes – “Eles usam muito estas músicas para compor as deles. Este quem me trouxe foi o Agnelo (da aldeia São Marcos)”, conta o comerciante.
Embora seja a maior do gênero na região, a Brassom não é a única a trabalhar com as músicas indígenas. Em Primavera do Leste (MT) a CD Show vende as músicas, gravadas em CDs, em formato MP3 ou WMA. De forma semelhante à Brassom, a venda aos índios não é o carro chefe da loja, que se mantém com o sertanejo, e não copia os DVDs – houve discussão com um indígena, que aparecia em um dos DVDs e não gostou de saber que eram vendidos livremente. Hoje os empregados da loja apenas revendem os DVDs trazidos pelos Xavantes. Apesar da ausência das mídias físicas há mais de 760 músicas nos computadores da loja, e as vendedoras montam os CDs de acordo com o pedido do cliente, a R$ 5,00 a mídia.
Para o professor Massimo Canevacci, da Universidade La Sapienza, de Roma, que estudou os rituais e representação das etnias Xavante e Bororo, a constituição de um mercado informal de autorepresentação apresenta um potencial fantástico – “Às vezes a TV publica e também a Rede Globo apresentam a cultura indígena através do panorama ecológico da defesa da natureza, em estilo de ‘publicidade National Geographic’, uma Playboy da ‘natureza’, insuportável”.
Segundo o estudioso, a autorepresentação através de mídias sonoras e visuais não é novidade na etnia, datando de meados da década de 1990, e muito impulsionada pelo digital, tanto em sua captação quanto em sua edição e produção, e são fundamentais – “Neste contexto de rápida mudança, crescimento demográfico, instrução autônoma, etc, as novas tecnologia digital encarnam a fratura que se apresenta na vida quotidiana e também na epistemologia indígena”, completa Canevacci.
Revista Eletrônica Cultura e Mercado
http://www.culturaemercado.com.br/relatos/indios-nas-prateleiras/
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