domingo, 11 de abril de 2010

GEMAÇÃO DIASPÓRICA E SUBJETIVIDADE SINCRÉTICA

MASSIMO CANEVACCI,
Universidade La Sapienza - Roma

Este ensaio parte de pesquisas e experiências cujo foco são as gemas que, como espelhos prismáticos, refletem uma multiplicidade de figuras. Essa polifonia prismática das pedras favorece uma gemação diaspórica do sujeito que se transforma em olho-multivíduo. Eróptica. Na própria matriz filológica da palavra diáspora (“spora” = semente) está a perspectiva multíplice da disseminação criativa de vida e de eros. Assim, o esporo é uma gema. As gemas diaspóricas que, como num colar, procuro enfiar em meu ensaio interligam cachos de conceitos/visões que – em tal refração – resplendem cromaticamente e difundem novos fluxos híbridos de criatividade.
O ensaio trata do sincretismo não mais ligado às dimensões filosóficas, religiosas ou populares, mas sim um sincretismo flutuante nas gemações culturais, comunicacionais, experimentais: explorando discursos, estilos, visões, percepções, estéticas, criações para além das concepções dominantes baseadas em visões totalizadoras de verdades únicas ou multiculturalismos convenientes.
As gemas sincréticas e diaspóricas desatam o além dos dualismos e cruzam um sujeito que experimenta a multidão do eu. Através de tais gemas – atravessando novos e diferentes cruzamentos, enxertos, mesclas – desenvolvo etnografias sobre autores, obras, imagens, planos-seqüência, panoramas corpóreos e sonoros, antropologias e filosofias, literaturas, webgrafias: cujo resultado final será o meu colar cravejado de gemas polifônicas, sincréticas, diaspóricas.

a) gemações
O primeiro e emocionante encontro de Caillois com o mundo mineral ocorre no ano de 1942, em Belo Horizonte, Brasil, quando é cativado por alguns exemplares de quartzo fantasma, escolhidos entre fragmentos não completamente puros, portanto excluídos da produção dos radares a que teriam sido destinados.
Roberta Coglitore (2003:42)
Entre os séculos XVII e XVIII difundiu-se por toda a Itália, especialmente em Roma, um singular ritual de massa: os peregrinos do norte – especialmente da Alemanha – vinham fazer sua “viagem de iniciação”, que tinha como objetivo a relíquia. Encontrar e comprar um osso de um santo particularmente famoso, que seria depois levado para o norte, onde podia ser colocado nas igrejas, como alvo de devoção. O excesso de procura por tais relíquias – cuja autenticidade não havia autoridade que pudesse certificar – difundiu uma prática que entre nós se chama “patacca”. Em outras palavras, começaram a proliferar ossos santos de todos os tipos, formas e anatomias, que eram vendidos a preços cada vez mais altos àqueles ingênuos peregrinos. Muitas vezes era mais fácil vender crânios inteiros, que haviam pertencido a santos particularmente devotos, por isso decapitados por ferozes imperadores. Essas caveiras – compradas por altos preços – depois eram enchidas com coisas preciosas. Gemas. Gemas engastadas nos espaços vazios deixados por uma carne já decomposta, que serviam para de novo miracular (se assim se pode dizer) os restos do santo. Tais resultados eram chamados reconditori. Essas obras são um misto de vistoso barroco, pedras preciosas engastadas no maior número possível, além de ouro, prata e sedas. O resultado é imponente. A caveira gloriosa tornava-se realmente “santificada”. Olhos gemados entre órbitas vazias e agora cintilantes, bochechas outrora descarnadas e agora cheias de gemas carnosas, narizes reconstruídos por pedras duras e inodoras, orelhas renascidas como gemações auscultadoras, lábios pintados por rubis beijadores.
Os reconditori assentavam solenemente em tabernáculos que preservavam seu esplendor barroco. Ossos cravejados de gemas. Gemossos.
No entanto, essas práticas de ressurreição dos crânios – enquanto não viam as outras, capazes de devolver as carnes – não eram atípicas. Em outras culturas diferentes foram elaboradas práticas afins. Ritualidades que transfiguravam o crânio morto em ossário vivo de preciosas gemas encarnadas. Uma das mais belas máscaras desse tipo está no museu etnográfico Pigorini, em Roma. Uma máscara asteca – talvez pertencente ao próprio Montezuma – que foi oferecida como presente a Lorenzo dei Medici depois de uma das primeiras viagens de volta das Américas e daqui levada para Roma.
As gemas eram atraídas pelos ossos: ou melhor, tinham de substituir a coisa mais preciosa do ser humano: sua carne. Transformar em gemação o tecido mais caracterizador do corpo. Em tal movimento, a decomposição inelutável da carne, em conseqüência da morte, era anulada e, por assim dizer, ressurgia como indestrutível gema. Essa é a verdadeira transfiguração da santificação. A imortalidade como imodificabilidade é o resultado de um deslizamento do orgânico – intrinsecamente doentio ou decadente – para o inorgânico. Do opaco para o translúcido. Do caduco para o imortal.
A caveira prismática assume uma obliqüidade de visões metafísicas, que remetem a um além, um além sacral.
O olho reconditorio emite uma mística eróptica: um fluxo de enxertos entre erotismo e óptica. Uma óptica gemada e por isso erotizada e erotizante.
b) diaspórica
A passagem intersticial entre identificações fixas abre as possibilidades de uma hibridez cultural que aceita a diferença sem hierarquia acatada ou imposta.
Homi K. Bhabha (2001:15)
Gostaria de distinguir o sujeito diaspórico de um conceito aparentemente afim: o sujeito nômade. As profundas diferenças entre esses dois conceitos têm genealogias diferentes que se me apresentaram como cada vez mais divergentes. Procurarei mostrar a diversidade dos respectivos percursos genealógicos em relação às gemas. Gemas diaspóricas.
A diáspora se move por espaços diferentes, nas histórias de subjetividades ignoradas pela História oficial. Difundiu-se uma intriga flutuante de pontos de vista a partir do pensamento pós-colonial e pós-feminista, sobre o sujeito excêntrico e a nova antropologia, que desenvolvem perspectivas radicalmente novas. Inicialmente, as diásporas são migrações forçadas.

Como hipótese deste ensaio, além das várias formas de diáspora historicamente determinadas, tentarei definir os contornos recortados de uma multiplicidade alterada e alterante de diásporas que podem dizer respeito a cada parcialidade de indivíduo metropolitano contemporâneo. Uma fase potencialmente nova.
O sujeito diaspórico já não está ligado à sua matriz “étnica” (judaica, africana, armênia etc.): é um sujeito desconexo, que opta por atravessar os fluxos metropolitanos e comunicacionais, pondo em discussão toda e qualquer sólida configuração daquilo que foi racializado, etnicizado, sexualizado por parte da lógica classificatória do Ocidente.
Isso significa que, para entender o fluxo contemporâneo, se deve observar como verdadeiro sujeito em movimento a nova forma da metrópole comunicacional. Uma cidade-metrópole não mais industrialista, modernista, projetada dentro de uma oposição centro-periferia, baseada no arraigamento identitário do trabalho dividido em classes sociais homogêneas, ou da família divida em papéis masculinos-femininos estáveis, ao quais a política, a dialética e o partido davam forma, substância e conflitos. O centro produtivo urbano da fábrica dava não só a taxa do valor econômico, mas também ordem através da visibilidade material do social, os elos fortes e compactos como as identidades.
A diferença entre a metrópole oitocentista (a percorrida por Benjamin) e as contemporâneas é que estas são atravessadas e cruzadas constantemente por sujeitos diaspóricos que não é possível deter com a força nem com as leis. Não só. Tais subjetividades diaspóricas sempre novas enxertam sincretismos comunicacionais inquietos e inquietantes. Uma metrópole que não sábia fazer-se viver e modificar pelas diásporas perturbadoras regride ao nível de cidade tradicional, “moderna”.
Há tempos o mix-híbrido de cultura, consumo, comunicação e tecnologias vêm varrendo a centralidade industrialista da velha cidade e até da metrópole benjaminiana que, apesar disso, foi a primeira a “ver” a importância da comunicação nascente. Por isso, a metrópole comunicacional – ao mesmo tempo totalmente material e imaterial – estendeu-se por vastas áreas de conurbação (o sprawl), cuja exposição transnacional e transterritorial determina sua importância não só produtiva como também perceptiva, emocional, valorativa. Em suma, o sprawl comunicacional tem sentidos múltiplos e multi-seqüenciais que o enxertam a novas tecnologias e novos sincretismos através de mutantes panoramas urbanos e criatividades antropofágicas que remastigam estilos, cruzam vários códigos, regeneram todos os olhares.
Os fluxos diaspóricos — seja como no passado, quando a instalação se dava nos campos e nas cidades, seja como no presente, em que a clássica distinção entre cidade e campo tem cada vez menos sentido — têm como cenário as mutantes feições da nova metrópole.
As diásporas nas metrópoles cedo ou tarde vão acabar. Aliás, os sujeitos diaspóricos são decisivos para a produção da nova metrópole.
Sem diáspora não há metrópole.
O nomádico é irredutível à cidade; o diaspórico é multiplicativo na metrópole.
Nessa perspectiva, entre o conceito de sincretismo e o de diáspora há múltiplas afinidades. São ambos conceitos líquidos. Na tradição ocidental, os conceitos têm uma solidez lógica própria, uma estabilidade entre palavra e significado que produz certeza cognitiva, afetiva, política, sexual. Nos interstícios dessa tradição e desse poder, sujeitos diaspóricos desenvolveram culturas sincréticas que fluem ao longo das correntes metropolitanas dos conceitos líquidos: eles não se opõem nem entram em conflito com os “sólidos”, mas se autonomizam em relação a eles.
Em outros termos, os conceitos líquidos não buscam a conquista do poder com máquinas-de-guerra, mas escorrem por entre contínuas travessas e cruzamentos que contribuem para inovar e remisturar, para encaminhar interminavelmente sua própria mutante multividualidade, driblando constantemente todo e qualquer poder centralista e autoritário.
Cross culture communication não significa – como muitas vezes ocorre em sua transformação em disciplina conveniente – administrar os conflitos emergentes entre pessoas pertencentes a culturas diferentes e que vivem na mesma região. Significa liberar as possíveis infinitas combinações nas quais travessias, caminhares e cruzamentos — internos e externos a todo sujeito — modificam o sentir inter-regional do trânsito comunicacional.
O sujeito diaspórico (multividual), cruzando e atravessando tecnologias, estilos, módulos culturais diferentes entre si, produz sincretismos. Encaminha-os.
“Os conceitos líquidos recusam dualismos opositivos, dialéticas sintéticas, realismos estatísticos, monologismos condicionados, utopias signaléticas, retornos eternos. Atravessam os canais invisíveis e fluidificados da comunicação metropolitana” (Canevacci, 2003:165).
Cruzamentos e travessias “sentem” as curvas deslocantes do sincretismo tecnológico (syn-tech) ao longo das novas expressividades performativas. O syn-tech é deslocante e diaspórico. Por isso escorre líquido: sem termo, interminável, inapreensível. As diásporas syn-tech gemam transculturas.
Sincrestismos e diásporas desafiam o poder da lógica monoidentitária e são dificilmente classificáveis dentro de tipologias definitórias estáveis. São conceitos em constante mutação e que favorecem mutações plurilógicas e multissensoriais. Ambos foram de há muito estigmatizados pela estabilidade sedentária. O domínio político, filosófico e religioso, nas suas asceses sistêmicas e holísticas, sempre desprezaram todo aquele que navega entre interstícios, escórias, fragmentos, justaposições.
Como diria Clastres e, com ele, os guaranis, diásporas e sincretismos conflitam e desafiam o controle do Um.
As líquidas mobilidades comunicacionais são imanentes a diásporas e sincretismos.
Em geral, o termo diáspora é acoplado à disseminação do povo judeu pelo mundo. A história específica desse povo está intimamente ligada a tal conceito, de tal modo que há muito os dois termos foram associados quase que genealogicamente. No entanto, tal conceito estendeu-se à segunda (em parte sincrônica) diáspora, também terrível porque marcada pela imposição da escravidão, que as populações africanas sofreram, dispersando-se inicialmente pelas grandes plantações das três Américas, e depois pelos quilombos periféricos, até chegarem – misturando-se — aos tantos centros das cidades. Por analogia, nos tempos mais recentes, utilizou-se sempre tal termo para indicar os processos de migração de populações mexicanas e de latinos em direção aos Estados Unidos, mas as diásporas palestinas, magrebinas, asiáticas também envolveram grupos pertencentes a diferentíssimos cenários políticos e culturais que se deslocaram para a Califórnia, a Europa e, em geral, para onde quer que se vislumbrem possibilidades mais felizes de vida.
Esse cenário diaspórico está-se tornando cada vez menos classificável segundo os costumeiros parâmetros históricos. A diáspora aproxima-se do exílio: da primeira sempre se ressalta a dimensão coletiva de desarraigamento em relação ao território de origem; do segundo, o caráter individual ligado aos motivos mais diversos.
Diáspora pode ser resumida como experiências de comunidades de minorias expatriadas – arrancadas de um centro originário – com uma memória ou um mito da terra de origem —, que nunca se sentem plenamente aceitas na nova terra hospedeira — com o projeto de retorno à terra dos antepassados, restabelecendo a pátria perdida — com uma solidariedade de grupo que produz uma forte identidade coletiva.

Ao lado e — sobretudo — além das tradicionais mobilidades transnacionais (compostas por expatriados, refugiados, trabalhadores estrangeiros, comunidades exiladas em conseqüência de descolonização, globalização, tecnocomunicação, flexibilidades), há tempos se apresentam novos cenários para sujeitos diaspóricos, não mais marcados pelo desarraigamento violento, nem pela alienação coletiva em relação à pátria. As travessias diaspóricas subvertem as regras jurídicas e, em geral, políticas nas quais se basearam os estados nacionais. Por exemplo, o conceito de cidadania está continuamente sendo desafiado pelos novos sujeitos diaspóricos, pelo que os estados e, ainda mais, as administrações comunais têm dificuldade de dar solução política a esses fluxos, que têm nas fronteiras dos Estados Unidos e da Europa limites cada vez mais lábeis e porosos.
Tudo isso está favorecendo a emergência de um novo estilo narrativo, não só nas músicas ou nas artes, mas também na literatura. Se o grande tema do romance oitocentista foi o amor desvinculado das matrizes de classe ou da opressão familiar, agora é a identidade que exige crescentes autonomias e pluralidades em relação às origens étnico-territoriais. Assim, as novas identidades-diaspóricas exprimem desafios e irregularidades perante a ordem administrativa estatal hospedeira, ou perante o controle das culturas de origem transplantadas para o mesmo território. Muitas vezes, as formas lingüísticas e flutuantes desses desafios se expressam com múltiplos módulos de sincretismos culturais.
Perda de origens, de uma identidade inicial e de uma consciência a ela ligada; esperança de aventurar-se no desconhecido, de modificar sua própria sensibilidade e sensorialidade. Ter um tipo de identidade diferente, não mais a exógena que se sobrepõe de modo violento à primeira, sentir a fluidez coexistente de uma pluralidade identitária que expande a consciência do si-mesmo. Dos si-mesmos. A consciência cada vez mais clara de que a perda pode ser geradora de esperança. De que atravessar contextos estrangeiros não favorece apenas a saudade arcaica dos modelos familiares, nem a banal assimilação ao novo: abre-se uma infinidade de caminhos e correntes que não são simplesmente resumíveis nas sempre cobiçadas “terceiras vias”.
As vias não são ordinais.
As novas perspectivas diaspóricas rompem a cerrada aliança que o Ocidente soube produzir entre humanismo universalista e nacionalismo autóctone. Entre o Iluminismo que proclama a igualdade de todos os seres humanos e os iluministas que perseguem os seres humanos das suas colônias que tomam a sério tal declaração. A subjetividade diaspórica insere-se nos interstícios desse tornilho, para escapulir, liberando suas próprias modalidades auto-afirmativas, e para carcomer o poder imobilista do localismo e totalizador do globalismo.
Por isso, é importante separar ou alterar a diáspora em relação à sua matriz, que caracterizou sua história como laceração, como desarraigamento violento de um território. Favorecer uma cesura em relação à diáspora tradicional, a sua libertação do peso da origem, e liberar o sentido disseminado de diferenciação e multiplicidade. Ir da diáspora cada vez menos ligada aos sofrimentos étnico-históricos às diásporas cada vez mais produtoras de experiências subjetivas nesta contemporaneidade.
A perspectiva dos novos sincretismos baseia-se numa concepção das diásporas não mais ligadas às forçosas migrações, aos exílios trágicos, à desterritorialização como subtração, mas sim a uma nova subjetividade experimentada pelo escorrimento das pluralidades próprias. Pluralidades decididas pelo próprio sujeito, e não por forças exógenas. Tal sujeito é heterônomo, não no sentido banal de depender de uma outra pessoa, mas sim no sentido de alterar a lei, seguir regras outras.
O deslizamento da autonomia à heteronomia explicita a reflexão segundo a qual o nomos (que é em si já criticável como lei) já não pode basear-se na monoidentidade fixa-estática do si, mas sim no esplendor fluido do outro. Heteronomia como heterofilia: não ser dominado pelo outro (o poder), mas sim como que ser expandido e em parte produzido pelo outro e no outro.
A identidade cultural diaspórica nos ensina que as culturas não se conservam quando protegidas de qualquer “mistura”; aliás, provavelmente podem continuar existindo somente como produtos de semelhante mistura. As culturas, tal como as identidades, devem ser continuamente remodeladas (Boyarin e Boyarin, 1993:721).
A proposta dos dois autores de uma “identidade diasporizada” vai no sentido dos novos sincretismos, com esta ressalva: tal experiência já não está ligada — como os dois autores ainda parecem querer sustentar — somente a uma matriz cultural judaica. Subjetividade e identidade diaspóricas são as experiências concretas e fluidas à disposição de cada multivíduo contemporâneo. O que conflita com dualismo e universalismo é a multiplicidade identitária daquele sujeito que decide experimentar e experimentar-se diasporicamente.
Esse é o trânsito policêntrico da diáspora às diásporas.
A globalização discrepante que pode emergir comprova o impulso progressivo contra todo e qualquer localismo hiporradicado e monoidentitário, ou contra toda e qualquer agregação totalizadora.
A pesquisa feita por Paul Gilroy sobre a diáspora africana não é vista — conforme se continua a apresentar — como um resíduo medieval ligado a uma concepção do homem pré-moderno. Tal reflexão é determinada, na verdade, pela centralidade metodológica do trabalho sobre todo o resto. São esses resíduos estruturais da pesada herança de “marxistas” que, durante décadas, subverteram o pensamento de Marx a partir da infausta dialética estrutura-superestrutura. Aí, ao contrário, a viagem dos navios negreiros já contém — em seus porões cheios de pessoas coagidas, em condição de escravidão — “um sistema vivo micropolítico e microcultural em movimento”, que constitui uma das mais extraordinárias antecipações da modernidade:
Podemos ver o Atlântico Negro desenovelar-se em teorias da cultura da diáspora e da memória da dispersão, da identidade e da diferença (Gilroy, 2003:19).
O navio negreiro como cronótopos.
Esse atlântico negro “banhará” não só as costas de todos os países que dão para tal oceano, como também impregnará o interior deles, conflitando com o surgimento dos estados-nação e da soberania de ferro que instituirá – mais com a força da política que do direito – identidades nacionais homogêneas e obrigatórias.
“A contaminação líquida do mar comportava tanto a mistura quanto o movimento” (33).
Algumas antecipações de uma contemporaneidade livre se situarão dentro daqueles infelizes navios de escravos, que já desafiam as generalizações baseadas em estrutura e Estado. Economia e política são assim corroídas por “modelos de fluxo e de viagem itinerante, típicos das aventuras transnacionais e da criatividade transcultural” (ibidem). A experiência do trânsito, das misturas impuras, dos sincretismos religiosos, espaciais e culturais, das recombinações surpreendentes, de estilos, códigos, modelos insubordinados, realiza-se graças às diásporas africanas que atracam nas costas do Atlântico e as transformarão – mais que em negro – numa multiplicidade de matizes cromáticos, identitários, culturais e comunicacionais constitutivos da modernidade.
Essas diásporas se seguem a uma diáspora anterior, obscura e silenciosa: a das gemas.
Na imensa dor das diásporas, Gilroy vê a emergência lancinante, mas potencialmente libertadora e seguramente modernista, da centralidade-descentrada das viagens (routes) contra a imobilidade vinculadora das raízes (roots), sobre a qual a retórica consolatória continua a espalhar banalidades passadistas e totalmente falsas. De encontro a estruturas econômicas e políticas nacionais nascentes, nos navios viajam códigos, estilos, culturas, corpos, músicas, danças, expressividades que influenciarão tão grande parte do sentir contemporâneo.
Na minha experiência subjetiva, tinha eu mais ou menos 20 anos, e minha vida mudou quando ouvi Africa, de John Coltrane. A partir de então, na configuração da minha identidade, a música dele entrou de modo determinante, e diria que, em alguma medida, mesmo mínima, não posso deixar de dizer-me parcialmente “afro-americano”. A música – certa música, tanta música das diásporas pan-africanas – tornou-se parte da minha experiência sensorial e cognitiva. Da minha estética. Nesse sentido, Africa está também dentro da minha antropologia. Isso, entre outras coisas, quer dizer que a pesquisa e a didática, o falar e o escrever, o observar e o observar-se devem – no sentido feliz do termo, e não no de obrigação – conter e liberar a improvisação. Partir de um conceito, uma imagem, uma frase, uma seqüência e depois explorar as multiplicidades de variações e inovações inesperadas que não são encerráveis numa estrutura e, portanto, não predeterminadas. Não encerráveis dentro de uma partitura. Esse é o sentido, para mim, das diásporas não mais circunscritíveis às suas matrizes africanas ou judaicas (e muito menos às nômades).
O limite sugerido pelas conclusões de Boyarin-Boyarin e de Gilroy está na vontade de continuar afirmando uma espécie de pertença quase absoluta de judeus e africanos a tal processo: no entanto, esse processo é extraordinário exatamente porque – liberando ulteriores módulos infinitos de hibridização – as diásporas se estendem para além das matrizes históricas e étnicas dentro das quais se originaram.
Daí as singulares conclusões às avessas de ambos: exatamente aqueles que procuraram conflitar com as jaulas estatais e identitárias parecem querer encerrar a diáspora dentro de supostas características nacionais. As motivações podem ser entendidas:
– no caso da diáspora judaica, afirmar uma visão não fundamentalista que deve ser separada do nacionalismo “ortodoxo” dentro do estado de Israel;
– no caso da diáspora africana, declarar-se contra o nacionalismo negro (afrocentrismo), mas também se distinguir do “pluralismo cético e aberto a tudo” dos construcionistas radicais.
Ao afirmar a continuidade diaspórica africana em Black Atlantic, Gilroy especifica o conceito de “mesmo-que-muda”, graças ao qual a “mesmice” tenta preservar identidade e diferença. A si mesma. É indubitável que o termo inglês changing same (que poderia ser traduzido como mesmo cambiante) é um belo desafio oximórico aos conceitos estáticos; contudo, se o mesmo muda, já não será idêntico-ao-mesmo, mas outro que si mesmo, ou seja, o trânsito híbrido do estranhamento.
Gilroy vê com extrema clareza o problema da diáspora – ainda que somente negra –, mas até certo ponto procura encontrar a clássica “terceira via” contra os reacionários afrocêntricos (que inventam para si uma identidade no passado) e os subversivos hiperconstrucionistas (que transferem a hereditariedade para um fluxo diaspórico não mais marcado pelo passado). E creio que as conclusões de Boyarin e Boyarin são determinadas por preocupações afins.
Como se sabe, por experiências demais, as chamadas “terceiras vias” sempre acabaram por alinhar-se com a ordem e a estabilização. As epistemologias diaspóricas só podem desenvolver movimentos pluralizados e deslocados que sejam imanentemente multiplicativos. Não mais “terceiros”.
O pensamento múltiplo deve minar a hereditariedade das formas “ordinais” (primeiro, segundo, terceiro) no seu objetivo de dar o significado de modo ordenado.
O sincretismo diaspórico não pode deixar de opor-se e de sorrir diante dos contínuos malogros de toda e qualquer suposta terceira via. O motivo deveria ser óbvio para todos: as terceiras vias constroem oposições binárias (afrocentrismo e construcionismo, no caso) para apresentar o changing same como mediação. Mas toda mediação reproduz o dualismo. É sua parte, por assim dizer, “dialética”. Por isso, o sentir diaspórico – em vez de construir seus inimigos binários para depois se apresentar como salvífico – move-se, transita no para-além e no plural. Desde o início, produz disseminações alteradas e alterantes, irredutíveis a qualquer esquema lógico que já contenha as soluções em seu interior. De fato, é exatamente esse a priori que torna vã qualquer inovação, para fechar-se, consolatório e bom-mocista, dentro da mesma lógica que, na mudança, continua a produzir e reproduzir os absolutos poderes da tradição-que-muda.
Em suma, as identidades diaspóricas contemporâneas são experimentáveis e prenhes de infinitos, assim como de indefiníveis e incomprensíveis desenvolvimentos-mutações exatamente e apenas ao subtraírem uma matriz étnica cada vez mais insustentável, seja ela africana ou judaica.
O sujeito diaspórico é outro em relação ao sujeito etnicizado.
Quem é de fato um “negro” hoje? O recenseamento, no Brasil, por exemplo, já não consegue situar a impressionante variante da autopercepção cromático-identitária dentro de quadros precisos ou numericamente significativos. Se o recenseamento racializado e objetivante cai por terra no Brasil, significa que, cedo ou tarde, cairá por terra em grande parte da ordem tipológica e estatística do Ocidente. E será uma grande festa híbrida. As variações entre o chamado “branco” e o chamado “negro” são infinitas e não mais restringíveis a categorias fixas ou quantificáveis. O mito de tais cores é base de uma grande e terrível metáfora que o domínio lingüístico da aristocracia ocidental transmitiu à burguesia, ao proletariado e às classes médias: o sangue. Sangue mestiço. Sangue puro. Meio sangue…
Sem sangue, ou seja, sem mais o sangue reduzido a ignóbil mito.
As culturas negras africano-americanas, francesas ou holandesas são diapóricas também em seu interior. E não unificadas. Se a diáspora for posta no singular – no unificado – há o risco de cair exatamente na armadilha que se quer desmontar. O problema é que as diásporas podem sair d’A História somente desmontando a versão no singular e pluralizando-se n’as histórias como diferenças: aquelas que cada sujeito diaspórico está disposto a pôr em movimento no seu viajar-se e no seu sincretizar-se.
Enxertar o plural, o descentrado, o diferente, o sincrético, os movimentos transnacionais dentro “das” histórias.
Deslocar seu próprio lugar significa sincretizar os espaços.
Diáspora é o trânsito in between entre local e global em que o mesmo não permanece o mesmo na mudança, mas goza-se no fazer-se outro. Alterar-se sobre fluxos polimorfos e polissígnicos. Depois de observar e ser observado pelo perturbador não é possível permanecer o mesmo.
Interstícios metropolitanos
Cruzamentos deslocantes
Ciências diagonais
Sujeitos diaspóricos
Culturas sincréticas
Correntes metropolitanas
Silêncios absolutos
Conceitos líquidos
Marcas naturais
Plurilógicas multissensoriais
Grafias de pedra
Gemas diaspóricas
Granitos gráficos
Quartzo fantasma
Escrita mineralógica
Glifos de pedra
Mística petrificada
Matrizes alfabéticas
c) gemasdiaspóricas
“Existe uma variedade de granito, chamado, por essa razão, de gráfico, cujo corte, depois de lixado, mostra concavidades que formam milhares de figuras de uma nitidez singular, comparável aos sinais de um alfabeto geométrico, por exemplo, o cuneiforme, ou melhor, os caracteres hebraicos”
Caillois (2003:10).
As diásporas não caracterizam apenas a fragmentação, separação de pessoas de seus contextos de origem. As gemas também – pelo menos certas gemas – são diaspóricas e começaram há milhares de anos uma cisão para saírem à deriva. Gemas diaspóricas à deriva. Há alguns anos estive em Búzios e na avenida à beira-mar logo notei um cartaz turístico-informativo no qual se falava de gemas que comprovavam uma matriz comum com a África.
Pangéia. Gemas pangéias. Pangemas.
A suavidade curvilínea da forma do Brasil é um engaste que se adapta perfeitamente à reentrância da África. O côncavo e o convexo. Como um abraço que se curvou e afastou numa dramática diáspora continental. A afirmação do indivíduo é a separação. In-divíduo como aquilo que resta da divisão atômica. A-tomon. Sem cisão em relação ao âmbito materno, familiar, comunitário não há indivíduo. O sujeito é aquilo que resta de autônomo a partir da sua afirmação como diferença irredutível em relação a um todo ao qual, na origem, estava ligado. Portanto, se a origem é importante para a definição de cada um, a cisão é ainda mais. A diáspora é uma dessas formas de deriva. De há muito vem envolvendo a dramaticidade de populações inteiras. Vimos no parágrafo anterior que agora é possível afirmar a diáspora como um novo tipo de subjetividade. Pois bem: aqui e agora afirma a presença de instâncias diaspóricas também nas gemas.
As gemas diaspóricas comprovam a beleza de uma fluidez das pedras dentro de áreas tectônicas inteiras que desestabilizam a compacidade da origem pangéica e, graças à deriva de continentes e sujeitos futuros, forma-se uma multiplicidade de uma géia não mais imóvel e fundada no poder da origem e de seus contínuos e conservadores retornos, mas sim no desejo de mudança. De tal modo, a beleza preciosa das gemas não consiste tanto em remeter ao valor da raridade ou da dureza, nem à complexidade das refrações luminosas ou dos arabescos descobertos, porém mais à secreta afinidade que as liga à fluidez dos sujeitos e dos continentes. Assim, gemas, sujeitos e continentes são abraçados por uma beleza diaspórica.
Roger Caillois é o autor que melhor representou as gemas em diversos textos. Aqui selecionei suas reflexões sobre as relações possíveis – fantasmáticas – entre grafismos das gemas e alfabetos. “O tumulto dos traços, das cúspides, das diminutas lascas em forma de gancho, das malhas sugere que foram jogados ao acaso. Depois, alguma coisa na confusão leva a pensar que talvez se trate de um repertório sistemático de signos que constituem símbolos coerentes e associados”.
“Pergunto-me de onde vem essa ambígua impressão que leva a presumir, em semelhante anarquia, a verossimilhança de um alfabeto impossível” (11).
E aquilo que, em sua opinião, falta “para ser escritural” é a correspondência com sons, portanto, com uma linguagem oral: então, no reino do silêncio absoluto, “as marcas naturais se tornariam alfabeto e poderiam, combinando-se, enumerar as duas infinidades: a de dados do mundo e a das fantasias da imaginação”.
E então Caillois fala de alfabetos-fantasma ou inutilizados ao longo das páginas de granito gráfico ou de estruturas cristalinas… ou então esse granito gráfico, ao invés de exprimir um alfabeto-fantasma em si, fornece justamente “a matriz ideal de todo alfabeto” (13). Como a cortiça dos plátanos ou as formas das nuvens que atravessam os sonhos.
As gemas como palimpsesto.
Dos cristais aos caracteres a imprensa não está como oposição fundamental, a não ser pela origem e pela função. Uns e outros são obsedados pelo frêmito da vida, são como que “hieróglifos naturais” que um arqueólogo tomasse por ruínas. A imagem de uma escrita fóssil, agulhas de luz, secretas asperezas. As gemas pertencem a um universo enigmático e prestigioso, são os primeiros instrumentos simples que permitiram ao homem imitar “o inefável sonambulismo da natureza” (34). Talvez ainda precise ser encontrada uma definição mais poética da linguagem das gemas.
Gemas sonâmbulas que giram como marcas naturais entre alfabetos de granito no reino do silêncio absoluto.
A partir dessas divagações gemopoéticas, Caillois desenvolve a sua perspectiva de ciências diagonais, que impelem para além das ciências disciplinadas. Diagonais porque atravessam obliquamente os saberes e os gêneros, as espécies e também os reinos, entre quais o reino mineral. A sua escrita mineralógica desenvolve o elogio à aridez, única que permite a existência das pedras. Grafias de pedras. Glifos de pedras. Poesias gemadas para uma mística petrificada.
d) Final bem cultivado
LUMINOSO, SINTÉTICO, ECONÔMICO
VÍCIOS E VIRTUDES DO PÓS-DIAMANTE
São gemas criadas com grande precisão em laboratório, e poderemos revolucionar em breve o mercado mundial das jóias

Tal é a manchete do La Repubblica de 17.2.2005, retomando um artigo do Newsweek, em que se descrevem a guerra das gemas e a obra dos modernos alquimistas empenhados em realizar o sonho da cópia perfeita. Já não é uma migalha do universo, mas uma criatura da tecnologia: é o pós-diamante. O diamante foi “domado”: a terra já não tem o monopólio da sua criação, visto que estão nascendo perfeitos diamantes artificiais, idênticos na reflexão perfeita da luz. Uma cópia que destrói os limites entre verdadeiro e falso. Ou melhor: essas novas gemas não são verdadeiras nem falsas: são cultivadas. Segundo o método “Apollo”, a sedimentação química do vapor forma um plasma de carbono numa câmara pressurizada do tamanho de uma lava-louça; ao passo que, segundo o “Gênese”, o carvão se cristaliza em torno de uma semente de diamante natural.




Bibliografia

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