Fazendo cena, a performatividade
Edélcio Mostaço
Não te dei nem rosto nem lugar algum que seja propriamente teu, tampouco um dom que te seja particular, oh, Adão! Não te fiz nem celeste, nem terrestre, nem mortal, nem imortal, a fim de que sejas tu mesmo, livremente, à maneira de um hábil escultor, o encarregado de forjar a tua própria forma.
Pico della Mirandola, Oratio de Hominis Dignitate
A maior parte dos seres humanos constrói moradias, dança, cozinha, assiste jogos esportivos, estuda, casa ou descasa, viaja, conta histórias, caça algum animal - ainda que com tubos de aerosol. Do mesmo modo, desempenha papeis sociais: são pais, filhos, tios, avós, cunhados ou sobrinhos, dedicando-se às mais diversas profissões e atividades dentro das sociedades, conformando uma múltipla e densa rede de interações. O que há em comum em tudo isso é a performance.
Noção moderna, embora derivada de um antigo verbo inglês , passou a maior parte do tempo despercebida enquanto tal, provavelmente em função da quase naturalidade que infunde: fazer ou desempenhar são hábitos tão entranhados no dia a dia que dificilmente nos damos conta de como os realizamos, a partir de que perspectiva e seguindo que modelos.
Os estudos performáticos – conjunto de noções, conceitos e diretivas que agrupa o dimensionamento das performances - devem a Richard Schechner sua primeira reunião e difusão. Após ter realizado sua formação nas universidades de Cornell e Tulane foi ele o fundador, em 1967, na cidade de Nova York, do Performing Group, coletivo teatral voltado ao “environmental theatre”, aquele praticado fora das tradicionais salas de espetáculos e mobilizando procedimentos estéticos que visavam estreitar as relações entre a vida e o teatro. Tornando-se professor da Tisch School of Arts, vinculada à Universidade de Nova York, ajudou a reformular o departamento de Drama que, desde 1980, passou a denominar-se de Estudos da Performance, tornando-se ainda, seis anos após, o editor da revista The Drama Review, agora sub-intitulada revista de estudos performáticos.
Sua influência, desde então, não parou de crescer em todo o mundo e, pouco a pouco, os estudos performáticos foram conquistando e sedimentando novos espaços de aprofundamento e interesse, quer nos EUA quer na Europa. Os nomes do antropólogo Victor Turner e da professora de estética Bárbara Kirshenblat-Gimblett contam-se entre os primeiros colaboradores diretos de Schechner, aos quais se somam os de Michel Kirby, Shannon Jackson, Ian Maxuel, Diana Taylor, Peggy Phelan, Ronald J. Pelias e James VanOosting, acrescidos de inúmeros outros nos mais diversos quadrantes do planeta.
Here, there and everywhere
É muito importante distinguir essas categorias uma da outra. ‘Ser’ pode ser ativo ou estático, linear ou circular, expandido ou contraído, material ou espiritual. Ser é uma categoria filosófica que aponta para tudo aquilo que as pessoas tomam como ‘realidade última’. ‘Fazer’ e ‘mostrar fazendo’ são ações. Fazer e mostrar fazendo estão sempre em fluxo, mudando todo o tempo – é a realidade, tal como a percebeu o filósofo pré-socrático grego Heráclito. Ele formulou um aforismo para esse fluxo: ‘ninguém pisa duas vezes no mesmo rio, nem toca uma substancia mortal duas vezes da mesma maneira’ (fragmento 41). O quarto termo, ‘explanar mostrando como se faz’, é um esforço reflexivo para se compreender o mundo da performance e o mundo como performance. Tal compreensão é, usualmente, aquela empreendida por críticos e acadêmicos (SCHECHNER, 2007: 28).
A performance, portanto, “marca a identidade, submete o tempo, remodela e adorna o corpo e conta histórias. Performances – nas artes, nos rituais ou na vida cotidiana – são ‘comportamentos restaurados’, ‘comportamentos duas vezes agidos’, ações praticadas que as pessoas treinam e buscam”, afirma Schechner (2007: 28), insistindo sobre os procedimentos repetitivos inerentes à tais ações ou condutas, em detrimento daqueles fortuitos ou inovadores, inéditos ou nunca antes empreendidos.
Essa noção de comportamento restaurado foi pinçada dos estudos de Erving Goffman dedicados à observação sociológica da sociedade, especialmente quanto aos fenômenos interativos que se produzem entre uma pessoa e seus circunstantes, no sentido de infundir uma influência sobre eles ou almejar algum efeito (GOFFMAN, 1985: 23). Tais comportamentos podem ser isolados, quando tomados como “pedaços” ou “seqüências” manejáveis de ações, como faz um diretor cinematográfico com as tiras de um filme: manipula-as e monta-as segundo seus critérios, dotando o indivíduo de um repertório delas, que as manejará ou as empreenderá sempre que desejado ou necessário, o que pode durar muito (como em rituais e dramatizações sociais) ou pouco (como em gestos, danças ou mantras). São elas empregadas em todas as espécies de desempenhos, do xamanismo ao exorcismo e ao transe, dos múltiplos ritos às danças, do teatro estético aos rituais de passagem e iniciação, da psicanálise ao psicodrama e à análise transacional (SCHECHNER, 2000: 107).
Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros “eus” que cada um alberga dentro de si, com distintas funções, como age em diferentes situações ou diante de momentos qualificados, dando resposta às motivações provenientes da vida; seja nas condições íntimas, domésticas ou coletivas. Ou seja, há a preocupação em se captar os modos como cada um se representa a si mesmo diante da multiplicidade de ocasiões que enfrenta, enfeixando não apenas traços da personalidade, como também da identidade e da conduta, a lhe fornecer algum tipo de coerência ou continuidade existencial (psíquica, imaginária, existencial, simbólica, cósmica etc). As diferenças entre como o indivíduo se representa a si mesmo num sonho, ao voltar a sentir um trauma infantil, ao narrar o que fez ontem ou como se projeta enquanto imagem no futuro não se afastam das funções sociais do eu antes referidas por Goffman, existindo entre elas apenas modalidades de grau, mas não de natureza.
É por essa razão que os estudos performáticos não isolam as atividades humanas em camadas ou compartimentos estanques – arte, ritual, cotidiano, cerimônia laica ou sacra -, entendendo que tais instâncias fundam e advém de uma solidariedade global, formando interconexões e subsidiando em modo amplo a existência dos indivíduos. Tais dimensões dificilmente têm suas origens ou inícios claramente discerníveis para cada qual, pois são heranças culturais, longevas, arcaicas, perdidas no tempo; assim como nem sempre ele sabe explanar como, onde, ou porque aprendeu a fazer ou faz as coisas desse modo.
Para abarcar essa multiplicidade de aspectos, Schechner propõe um diagrama interativo composto de quatro dimensões, sendo elas: a subjuntiva (dimensão mítica ou ficcional), a que se opõe a indicativa (real ou histórica); havendo oposição também entre o passado e o futuro que as atravessa. Desse modo, o “eu”, ao transitar entre uma e outra, torna os sucessos ou fracassos interdependentes entre si e vinculados a um quadro amplo de vetores. A noção de ensaio é aqui central, indicando as tentativas, procuras, repetições que estão na base desses comportamentos catalogados e empreendidos.
Ao afirmar esse caráter repetitivo da performance, Schechner efetua um contraponto em relação à performance art, tal como ela foi concebida, praticada ou teorizada por uma infinidade de artistas contemporâneos das mais diversas formações e/ou vínculos a movimentos artísticos (GOLDBERG, 2006; GLUSBERG, 1987; CARLSON, 2004). Embora reconheça as afinidades existentes entre os dois conceitos (bem como, suas diferenças) – ambos emergindo, simultaneamente, no cadinho multiforme da contracultura que marcou os anos 1970 – as duas acepções galvanizam diferentes enfoques, possuem metas diversas, conformando coisas não-redutíveis uma à outra (SCHECHNER, 2006: 28-51). Enquanto instância artística, a performance art não deve ser separada de algumas práticas estéticas que se desenvolveram, quase simultaneamente, em várias partes do mundo, e que possuem no happening, na action painting, na live art , na arte conceitual, na body-art, na atuação do movimento Fluxus não apenas suas origens como seus procedimentos mais relevantes. Ela está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência corporal, na natureza indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do artista numa situação extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo ou corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua ação poética busca a transgressão, a ruptura, o corte – tudo o que é marcado como diferença, enfim -; responsáveis maiores pelas suas características ontológicas de gesto original, a saltar fora da série das repetições, dos ensaios, das restaurações.
Tomando o corpo do artista como locus preferencial, a performance art aponta para seus poderes e avatares, apostando no desejo como motor para transformar o que visa infundir, máquina simbólica capaz de produzir intensidades e aderências. Jorge Glusberg assim a situa:
é o lugar de reencontro permanente, para quem jamais tomou contato com o que ela experiencia. A performance cria, principalmente, ao resgatar o rejeitado e não ao explorar o desconhecido. Um reencontro com a experiência que o homem médio não pode buscar, dado seu limitado contato com o mágico domínio da arte (GLUSBERG, 1987: 103).
Se tais são as perspectivas que separam as duas concepções, é preciso destacar também as afinidades. E estas estão no horizonte comum de onde partem. Para fazer frente à repetição, a performance art costuma recorrer, com freqüência, aos rituais estabelecidos, aos poderes do corpo e suas reverberações, à magia e às práticas primitivas, naquela zona pouco clara entre o instintual e o cultural, razão pela qual toma a vida em seus aspectos especificamente performáticos como ponto de incisão e território de exploração. O performer busca infundir, com tais operações, relações derrisórias, de zombaria, de transgressão, de ultrapassagem, irônicas ou de desrecalque, críticas ou de desvirtuamento, empregando estratégias que visam ressaltar sua originalidade enquanto mago semiótico. Mas delas não se aparta, ao contrário, toma-as como ponto de referência para suas operações; o que permite se dizer que a performance art representa o lado crítico da performance, sua contraparte intelectualizada e inovadora.
Com o passar do tempo um outro aspecto da performance veio se configurando, surpreendendo agora o outro lado da equação: o público. Ele começou a ser estudado e difundido por Paul Zumthor enquanto escuta, em decorrência do desenvolvimento de estudos voltados à oralidade por ele empreendidos, a partir das pioneiras incursões da Escola de Constança ao longo dos anos de 1960 em torno da recepção.
Há, para Zumthor, uma performance da audição e da leitura – e, por extensão, de toda recepção -, instância que, até então, nunca esteve claramente desvelada para os estudos performáticos. Os distintos modos em que a audição da literatura oral ou a leitura do texto escrito são empreendidos, sentado, em pé, concentrado, disperso, com ou sem ruído, em movimento ou parado etc., influem diretamente sobre as relações criadas com aquele texto, fomentando apreensões e prazeres diferenciados frente ao poético. Atenção especial deve ser creditada aos ritmos corporais do “leitor”, como são eles afetados e/ou alterados em função do modo como ocorre esse ato:
Se admitimos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de ‘poética’, e uma outra, a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000: 41).
Sem descurar as intenções e qualidades que marcam a pragmática e suas preocupações com o universo do sentido (sobre as quais Searle e Austin forneceram os primeiros gabaritos de intelecção, complementados, a seguir, pelos estudos semiológicos e semióticos), Zumthor grifa o papel e a função nela ocupados pela voz; ou seja, essa instância corporal subjacente a toda pragmática, quer se trate de palavra oral ou escrita. Ficam ressaltados, desse modo, os efeitos de dramatização que lhe são subjacentes, donde emerge uma intensa teatralidade adensando as comunicações humanas; fato, por sua vez, antes também diagnosticado por Goffman ao tratar das representações do eu na vida cotidiana. Parece, assim, fechar-se um circuito de noções: tanto nos fenômenos da comunicação (uso da palavra), quanto nos da praxiologia (gestos, posturas e deslocamentos intermediando as relações inter-pessoais), ou nos desempenhos sociais que buscam alguma eficiência (a dramatização social), nos quais a performance emerge como base comum, denominador que tudo abarca e tudo submete.
Um último e fundamental esclarecimento faz-se necessário: embora tenha nascido no ambiente teatral, os estudos performáticos não apenas abarcam as distintas modalidades reconhecidas como tal mas as subsume às suas grandes determinações; ou seja, o teatro – entendido em sua pluralidade de manifestações em todo o mundo, cumprindo diferentes funções sociais em cada cultura – é tomado como uma parte dos estudos performáticos. No caso do teatro ocidental, tomado como teatro estético, possui um curso histórico e distintos formatos cênicos, passíveis de serem percebidos e estudados na pluralidade de traços que o demarcam como função primariamente ligada ao entretenimento.
Percebidas essas grandes linhas que demarcam os estudos performáticos e as diversas acepções que os circundam, verifiquemos agora os pressupostos que os sustentam.
Flávio de Carvalho desfilando sua saia tropical pelas ruas de são Paulo
Dialogismo intercultural
Como observado, fazer ou desempenhar ocupa função primordial na vida humana, individual e coletiva.
Antes dos estudos da performance, os pensadores do ocidente achavam que sabiam exatamente o que era e o que não era ‘performance’. Mas, de fato, não existe um limite histórico ou cultural fixável para distinguir o que é ou não é ‘performance’. Ao longo do tempo novos gêneros foram somados e outros caíram fora. A noção básica é a de que qualquer ação que seja estruturada, apresentada, marcada ou exposta é performance. Muitas delas pertencem a mais de uma categoria ao mesmo tempo. Um jogador de futebol americano, por exemplo, correndo com a bola e apontando um dedo para cima depois de um tento convertido está performando uma dança e executando um ritual como parte de seu desempenho profissional enquanto astro popular (SCHECHNER, 2008: 2).
Essa extensa rede de relações conforma o tecido social no qual estamos atados, uma interconexão de significados, como entende GEERTZ (2008) a cultura, algo comparável à semiosfera evocada por Iuri Lotman ou ao dialogismo proposto por Bakhtin, inextrincáveis liames entre signos e signos de signos que infundem e desdobram significados, ao mesmo tempo em que impelem as ações a se ligarem umas às outras, engendrando a reciprocidade entre comportamentos ativos e reativos.
Estamos, portanto, no denso território da representação. Se Platão e Aristóteles podem ser tomados como precursores, naquilo que diz respeito às implicações em torno de sua natureza, o fenômeno representacional não deixou de estar presente ao longo de toda a história intelectual do ocidente como instância decisiva mediando a apreensão do real. Após as interpretações renascentistas, barrocas e clássicas, o século XIX iludiu-se com a possibilidade de uma decodificação objetiva e positiva das representações humanas, conformando uma modernidade segura de si e convicta de seus pressupostos. A pós-modernidade, todavia, obrigou a revisão de tudo isso.
A consideração do Outro, como destacada por LACAN (1978) na década de 1950, criando o fantasma de si diante do espelho e a ambígua sensação de divisão entre o je e o moi não está distante daquelas especulações de Bateson e Goffman, ao final daqueles anos, ao analisarem a qualidade das comunicações intersubjetivas encravadas nas representações do eu na vida cotidiana, marcadas pela ocorrência de vazios e contra-sentidos. Ao mesmo tempo, J. L. Austin estava investigando os primórdios da pragmática, salientando o que há de performatividade subjacente aos atos da fala, quando a linguagem é empregada enquanto ação ou para designar atos perpetrados (como em contratos, casamentos, rituais, juramentos, batismos, promessas etc). A emergência do estruturalismo, do outro lado do Atlântico, fez aflorar os paradigmas imanentes ao fluxo histórico e social, salientando a repetição com que se apresentam no jogo social – enquanto pluralidade de vetores simultâneos, nos planos econômico, histórico, sociológico, antropológico, lingüístico etc. -, que influirão, em curto período, também sobre as chamadas ciências duras, como a matemática, a física ou a biologia. O mundo da estrutura não deixou intocado nenhum campo de conhecimento.
Nessa passagem mediada entre os anos de 1960 e 1970 surge com ênfase o pós-estruturalismo que, nos EUA, recebeu o impróprio nome de french theory ou, simplesmente, theory. Foi a motivação maior para que nomes como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jean-François Lyotard, Guy Debórd – entre outros – se transformassem em referências indispensáveis naquele momento, em função das revisões a que submetiam o estruturalismo. Muitos deles, convidados por universidades americanas, ministraram cursos ou dirigiram seminários de estudos em vários pontos do país, fomentando o alastramento do pós-estruturalismo, do desconstrucionismo, da crítica aos modos tradicionais da representação (CUSSET, 2008).
Esses novos aportes engendraram um redimensionamento não apenas das ciências humanas e da arte como, sobretudo, embasaram análises interdisciplinares efetivadas a partir de novos olhares e percepções. Foi a partir desse novo horizonte que Wolfgang Iser pode então afirmar em How to do theory:
Falando em geral, a ênfase das teorias modernas está nas relações entre o trabalho de arte, a disposição de seus receptores e as realidades envolvidas em seu contexto. As teorias traduzem a experiência da arte em conhecimento que – orientados por critérios humanos – propiciam uma oportunidade de elevar ao máximo a compreensão, refinando as faculdades perceptivas, e transmitindo um conhecimento não falsificável. Além disso, as teorias servem para explicar as funções sociais e antropológicas da arte, servindo como ferramentas cartográficas para a imaginação humana, o que é, afinal, o recurso último que os seres humanos possuem para sustentar a si próprios (ISER, 2007: 9).
A relevância e o crescimento da theory coincidiu, nos EUA, com o desenvolvimento dos estudos performáticos, ambos emergindo do mesmo influxo contra-cultural que inquietou e impulsionou o período. Em vários casos, tais estudos se entrelaçaram e estabeleceram conexões entre si. Os vínculos mais palpáveis são aqueles percebidos nos estudos culturais, nas pesquisas em torno de questões pós-coloniais e os associados aos novos territórios de militância, como os queer studies e os estudos feministas – onde, talvez, a maior originalidade esteja em Judith Butler -, no modo como destacou a questão da construção de gênero como um ato performativo. Mas não apenas conexões assemelhadas podem ser verificadas, havendo novos desenvolvimentos em comum, como veremos a seguir, sobretudo quanto à performatividade, conceito chave cintilando nesse novo universo teórico.
Ser como ser
Foi o filósofo norte-americano J.L. Austin quem introduziu o conceito de performatividade, em 1955, ao lançar How to do things with words, um conjunto de palestras onde se debruçou sobre a natureza da língua quando efetiva ou registra atos. Frases como “eu prometo que ...”, “não aceito”, “aposto que ...”, “peço desculpas”, “farei exatamente isso” etc. referem ações concretizadas ou por fazer como compromissos de execução, numa inseparável articulação entre gesto, atitude e discurso. Através dos speech acts, na mesma linha de raciocínio, seu discípulo J. R. Searle avançou tais investigações, afirmando que situações e realidades são construídas através deles. Os dois autores se referiram ao teatro, como exemplo onde tais situações – porque imersas na ficcionalidade – não deveriam ser tomadas como “sérias”, tratando-se então não de performance mas de performatividade. Ou seja, atos “falsos”, destinados “à ilusão”, sem validade efetiva.
Ao retomar essa questão, Jean-Fançois LYOTARD (1971: 87) salientou que, em nosso momento sócio-cultural marcado pela duplicidade, inconstância e embaralhamento de limites entre real e fictício, aquelas afirmações necessitariam ser revistas, à luz de novos enquadramentos, especialmente no que concerne ao poder político e à função das ciências nas sociedades. Nessa nova cartografia pós-moderna, também identificada como a própria estrutura do capitalismo tardio ou ultra-capitalismo , a esfera da cultura ganhou ampla vantagem, um novo campo a ser explorado no coração da máquina de fazer dinheiro.
“O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção de mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma função e uma função estrutural cada vez mais essencial à inovação estética e ao experimentalismo. [...] ... a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de classes, o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror (JAMESON, 2007: 30).
Ou seja, há uma nova lógica presidindo as relações sociais, intermediando a produção de imagens, imiscuindo-se na esfera das representações, complicando e desestabilizando as relações entre o real e o fictício, quase sempre as invertendo – tomando-as como uma nova organização dos signos, a sociedade do espetáculo, como a percebe Guy DEBORD (2003). Tanto Lyotard (que opera através da lógica do simulacro) quanto Jameson (que opera através da dialética do reflexo) dedicaram especial atenção às mídias, às cerimônias e protocolos do poder político, aos conglomerados empresariais desdobrados em múltiplas direções de especulação (holdings), às ciências voltadas para o desenvolvimento de implementos tecnológicos (especialmente digitais) que, dada sua progressão geométrica, mais adensaram essa infindável produção de mensagens, imagens, bancos de dados e manipulação de informações. Adentramos, assim, uma era que, para outros autores, é pura semiose e extensão de imagens e informações entre si, onde despontam ciborgues, clones, avatares, realidade virtual, duplicações e replicações que, caracterizada como cultura das mídias, ultrapassou a anterior cultura de massas (SANTAELLA, 2004).
Se toda cultura é mediação – quando tomada em sua realidade semiótica e dentro dos parâmetros da semiosfera -, não faz muito sentido insistir na noção de simulacro, como quer Lyotard, uma vez que tal viés deriva de uma pressuposição metafísica, mas pensar que a cultura não é um mundo à parte, mas sim uma estrutura simbólica dinâmica, interfaceada, plurimorfa e organizada em redes, sempre uma complexa manifestação material do dialogismo. E que o ego, antes de ser uma estrutura unitária ou produto de uma emanação celestial à procura da verdade, se organiza em planos culturais, comporta desdobramentos e refrações, sendo o resultado, como quer Lacan, de uma coleção desordenada de identificações, cuja ilusória unidade é apenas uma projeção do imaginário. Se o real externo é, portanto, múltiplo (a cultura), também o ego que a vive e percebe o é, adensando essas conexões entre o dentro e o fora.
É nessa acepção que a reprodutibilidade cultural – instância pioneiramente desbastada por Benjamin no início da crise da modernidade – volta a cintilar no horizonte pós-moderno, agora em seu perfil enquanto performatividade; uma vez que não mais estamos lidando com um original e uma cópia, mas num mundo onde tudo é cópia ou, melhor dizendo, nada é original: tudo é intertexto. Ou, dito de outro modo, onde tudo replica, tudo se reproduz, tudo se torna signo de signo, confundindo a origem e mesclando as derivações, a exigir novas apreensões para as interfaces entre os fenômenos. O dinheiro, por exemplo, sustentáculo do sistema de produção, está cada dia menos presente, substituído pelos contracheques e cartões de plástico, aplicações financeiras e letras de câmbio, tornando sua existência apenas virtual. Migrando da era mecânica e analógica, o capital tornou-se, ao longo do século XX, informatizado e digital. Na mesma medida, transformações corporais rapidamente tornaram-se plausíveis podendo o negro cantor adolescente Michel Jackson passar, em dez anos, à condição de pop star adulto branco, empregando recursos de alta tecnologia que refizeram seu corpo, criando uma virtualidade biológica e existencial.
Os gêneros e a sexualidade constituem-se, nesse sentido, em outros exemplos diariamente presentes na mídia.
Muitos artistas ligados à body art se cansaram de demonstrá-lo. No Brasil, o espetáculo Borboletas de Sol de Asas Magoadas (2006) enfoca a vida do travesti Beth. Em sua primeira parte, o espectador é introduzido naquele ambiente um pouco nebuloso e apenas inferido no qual um rapaz se transforma em moça, empregando, para tanto, inúmeros artifícios, seja para disfarçar seus traços mais evidentemente masculinos, seja para realçar aqueles mais próximos dos femininos. Ficamos sabendo, então, que tudo é truque. Que ele ficou o dia inteiro com as mãos para cima para evitar o inchaço das veias das mãos; que usou tantos e tantos cremes para dar volume aos cabelos, caprichosamente ensaiados para, num rodopiar de cabeça, voarem luminosos; dos segredos para disfarçar a barba e realçar o carão, das dificuldades para comprar sapatos de salto com numeração grande etc. etc. Uma verdadeira aula sobre a produção social da feminilidade – ao menos como ele/ela a vê, a vive, a deseja ou pensa que também os outros acreditam ser um padrão feminino de apresentação. Estamos, assim, diante do fake mais descarado.
O mais instigante é que o espetáculo foi criado e é interpretado pela atriz Evelyn Ligoki, uma gaúcha longelínea e desenvolta que, por força do papel, se desdobra sobre si várias vezes, em agudo exercício performativo. Mulher, ela representa um homem que quer parecer (ou ser) uma mulher; ocasião para que todos seus gestos, atitudes, posturas e inflexões vocais passem por rigorosos exercícios de readequação e replicação, com o objetivo de criar um outro ser, uma mulher superlativa, um ápice de feminilidade impostada. Seu trabalho artístico é tão minucioso, adequado e mimético que mesmo espectadores experimentados ficam em dúvida quanto a estar diante de uma atriz ou um ator, instância fundamental para criar a almejada ambigüidade e atingir a sensibilidade da platéia.
Aberto aos incidentes do dia, aos acontecimentos da rua, às características da platéia de cada sessão, Borboletas é uma performance que alcança todos os estratos da performatividade: a construção de um ser mediante a reprodução de pedaços de ações ou comportamentos, como antes referido, ensaiados e manejados, nesse caso, com finalidade artística, mas que são os mesmos que, no cotidiano, outros seres humanos empregam para se apresentar socialmente através de pautas comportamentais.
Prevalecer, sobreviver, superar
No núcleo do conceito de performatividade está a acepção de virtual (ou, como querem alguns, de simulação). Ela absorve tudo o que está na circunvizinhança de símil, como se, em lugar de, experimento, tentativa, ensaio, fingimento ou disfarce, quando tais termos designam ou referem operações ligadas à concepção/execução de um ato ou performance. Tais ações podem preceder ou serem simultâneas ao próprio agir, com ele guardando relações íntimas e indissociáveis. Onde a ênfase incide, em todos esses casos, sobre o modo como são realizadas as ações.
Estamos vivendo a era dos reality shows, quando a TV inunda o mundo com imagens pseudo-reais, programas que imitam ou simulam a própria vida, avizinhados na zona limítrofe entre o ser e o parecer. Programas jornalísticos são cuidadosamente urdidos com reportagens que, mesmo baseadas em fatos reais ou imagens autênticas de acontecimentos, sofrem um tratamento dramatúrgico antes de irem ao ar. Edita-se o escandaloso, o chocante, a violência, o horror, o indecente, o abusivo, o transgressivo, apresentando-se tais materiais sob formatos abafados e pasteurizados, que evitem causar pânico, repulsa, recusa ou infundir reações adversas sobre os telespectadores. Trata-se da lógica do melodrama: o mundo é violento, sanguinário, horripilante, mas também terno, acolhedor, aprazível. A cada imagem de guerra deve corresponder outra de campos floridos; a cada ato de violência, outro de generosidade; para um assassinato, a notícia do nascimento de trigêmeos, e assim fica controlada a angústia e zerada a conta entre amor e ódio, vilões e virtuosos que – a tolerância, afinal, é uma dádiva nos corações bem-aventurados – constituem a dupla face desse mundo.
Programas como Lost, Survivals, The Truman Show, entre outros, foram concebidos exatamente nessa zona fronteiriça entre o real e o aparente, onde o desafio – e há algo mais perturbador e instigante para um jovem que a emulação? – é o propulsor mais eloqüente, capaz de galvanizar desejos e expectativas, projetos e identificações, não apenas entre os espectadores, mas também entre os participantes, pessoas comuns que se submetem a disputar algum tipo de prêmio. No período da Depressão e do New Deal, dada a escassez de empregos, tornou-se moda a criação de concursos de resistência: Carlson McCullers retratou em They shoot horses, don’t they? uma maratona de dança na qual o casal vencedor seria aquele que resistisse ainda se movendo por mais tempo. A fórmula, típica das sociedades movidas pela concorrência e que estimulam a disputa como princípio de sobrevivência, pegou. Big Brother Brasil, O Aprendiz ou Jogo Duro são variações locais do lema “prevalecer, sobreviver, superar”.
Se os limites entre o real e o ficcional estão borrados na TV, igualmente o estão na vida, digamos, cotidiana. A virtualidade impera sob vários formatos: quando uma superpotência testa um míssil, quando um cientista recria em laboratório as condições mesmas do meio biológico para experimentos, quando utilizamos cartões de crédito. Dolls, essas garotas que se vestem de boneca e levam a passear seus modelitos, infestam os clubes noturnos das grandes cidades; ao lado de drag queens, largados, tattooeds, bad boys, rappers e junkies que, cada qual no seu figurino, compõe tribos e erigem espaços para viverem suas fantasias, excentricidades e particularidades que – mesmo vividas aos milhões – infundem a ilusão de autenticidade, passam como algo original.
“O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica”, adverte Linda HUTCHEON (1991: 15) em relação a esse contexto no qual estamos nos movendo. Tais “contradições da auto-reflexividade” constituem um outro modo de falar a performatividade; através daquela inesgotável rede intertextual que percorre a cultura em todos seus formatos: a paródia, a citação, o metadiscurso, a subjetivação do paradigma, o uso da lógica paradoxal, as metonímias, as metáforas, os anacolutos, todas essas formas problemáticas (porque nunca isentas ou indivisas) com que a humanidade se auto-representa.
Existem artistas, contudo, que não gostam de ser tomados como humanos ou comuns mortais, pois almejam algum tipo de diferença essencial e, pelo menos desde meados dos anos de 1960, alimentam um declarado ódio ao virtual, ao dramático, à teatralidade que insiste em escamotear-se e imiscuir-se nas mais remotas representações da cultura. O crítico Michael FRIED (1968), em seu célebre Art and objecthood, ajudou a disseminar essa atitude ao escrever: “o sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, começa crescentemente a depender de sua capacidade de negar o teatro”, abrindo a série de outras negativas urdidas na mesma direção. Cabe, então, perguntar: onde está essa intangível objetividade da arte, alheia e superior ao mundo, que se pretende afastada da teatralidade? Não, certamente, no percurso da action painting, da body art, da performance art, da live art, da povera, da environmental, do brutalismo que, em modo crescente, voltaram-se para o teatral e com ele efetuaram conluios e permutas, exatamente derrubando fronteiras, turvando limites, espetacularizando seus produtos e ações. A resposta estaria na minimal? Naquela busca de simplicidade, despojamento e magreza puritana de formas e linhas que marcam os objetos de Judd, Stella ou Morris?
É preciso ficar claro que a teatralidade não está na coisa, mas no olhar do espectador; ela é um produto mental propiciado pelas percepções e, para emergir, não depende de um palco, atores ou cenografia, mas tão somente de uma operação de linguagem intermediando um sujeito e um objeto, para ficarmos na distinção clássica e que, não fortuitamente, remete também à metáfora objetual do próprio espetáculo minimal: algo a ser visto, alguém para ver.
Teatralidade e performatividade são irmãs siamesas, nascidas do mesmo influxo fenomenológico que fundamenta a mais elementar experiência de um sujeito: olhar. Está na base de todos os nascimentos, próprios ou figurados, subjacentes à expressão “dar à luz”. Essa base antropológica que infunde uma instalação no mundo faz decantar um imaginário, fundeia uma pessoa – cindida, dialógica, pulsional – e, por isso mesmo, dramática, vetorizada por tensões diversas e antagônicas, por vezes conflitivas outras ambivalentes, mas sempre disjuntivas, o eu e o Outro. Razão pela qual a objetividade, aquela quimera positivista referida por Mr. Fried, diz respeito apenas a uma parte do todo, talvez a menos significativa, quando se trata do campo artístico, da vida dos artistas, da inserção da arte na discussão cultural.
Como destaca SCHECHNER (2007: 26), “tudo pode ser estudado ‘como’ física, química, direito, medicina – ou qualquer outra disciplina. Porque o que se afirma com o ‘como’ é que o objeto de estudo será considerado ‘da perspectiva de, ou em termos de uma disciplina específica’.[...] Há tantas espécies de ‘como’ quanto os campos de estudo”, o que nos remete novamente à viseira de Mr. Fried, ao propor verificar o mundo apenas da perspectiva das artes visuais, esquecendo-se que ela depende dos artistas e estes habitam uma dada sociedade culturalmente organizada. Como proposta interdisciplinar, os estudos da performance almejam ultrapassar tais dicotomias de enfoque.
O teatro
Dado o caráter dramático, representacional e inteiramente performático do teatro, como singularizar sua performatividade? Convém lembrar que estamos diante de um substantivo abstrato derivado de adjetivo, ênfase que, tal como sucede com teatralidade, indica uma torção operada sobre o substantivo, logo um modo ou maneira de se apresentar. Algo que pode ser expresso como fazer o que se faz; ou seja, enquanto faz o indivíduo não perde a consciência de que está fazendo, podendo mesmo, sob certas circunstâncias, enfatiza-lo ou dar-lhe destaque. Nesse sentido largo, todo teatro metateatral pode ser tomado, pela sua própria constituição, como articulado com performatividade; uma vez que mobiliza recursos de sua própria narratividade enquanto discurso. Isso pode ocorrer quer no plano do texto (as falas, as cenas, a cenografia ou outros elementos se apresentam como êmulos do palco ou da atividade cênica) quanto do espetáculo (como na commedia dell’arte, na ópera-balé, na mágica, na feérie, nas mascaradas etc., espécimes marcados por acentuado teatralismo).
Hamlet fornece um proto-exemplo: os dois rústicos encarregados de abrirem a cova para o corpo de Ofélia discutem entre si se ela deveria ou não ser enterrada em cemitério cristão, uma vez que havia cometido suicídio. Um deles retruca que um ato “has three branches; it is, to act, to do and to perform: argal, she drowned herself wittingly” (ato V, 1º).
Mais particularmente, a performatividade é observada no trabalho do ator, dissolvida na enormidade de recursos que pode ele dispor para tornar-se virtualmente outro: na caracterização (perucas, corcundas, barrigas, narizes, postiços em geral), na composição (posturas, gestos, expressões fisionômicas, mímica), na tipificação (conhecida, em francês, como emploi, todo o conjunto de recursos empregados para parecer um tipo já conhecido pela platéia, quer do ponto de vista físico quer psicológico e que almeja uma rápida identificação). São esses seus recursos clássicos. Em consonância com novos procedimentos, poderemos ter o distanciamento (brechtiano ou não), a narratividade (ênfase no aspecto fabular), a ilustração corporal (gestos de ênfase) ou o chamado teatro físico, a mimese corporal (adoção de gestos, posturas e mímica do modelo seguido), entre outros.
Determinadas modalidades cênicas – o teatro de rua, as formas animadas, o novo circo, a dança-teatro, o teatro de bonecos – costumam dar relevância a seus elementos de performatividade, como modo de sublinhar seus materiais expressivos, almejando assim mais ampla comunicação ou lutarem contra os ruídos que nelas intervêm.
Há algumas décadas o teatro brasileiro registra alguns espetáculos muito particulares, quase sempre nascidos da iniciativa popular e que se tornaram atrações anuais nas cidades onde ocorrem, tais como a Fundação de São Vicente, SP (montagem na praia que congrega centenas de moradores da cidade, ultimamente contando com protagonistas convidados), a Tomada de Laguna, um episódio da Revolução Farroupilha (na cidade de Laguna, SC) ou a Paixão de Cristo (em Nova Jerusalém, PE), esta repetida, em versão menor, em inúmeras cidades do país. São eles exemplos de performatividade superlativa, uma vez que envolvem não-atores em desempenhos rituais, irmanados num evento prenhe de significados e ressonâncias para as comunidades. O Boi de Parintins, o Carnaval e inúmeras outras manifestações cênicas espalhadas pelo país apenas confirmam essa arraigada necessidade de representação que encoraja as populações.
Por outro lado, temos os espetáculos militantes, igualmente produtos da mobilização popular, organizados como ritos que visam algum tipo de conscientização, arregimentação ou outros em torno de causas sociais. Nesse viés, temos os comícios e atos públicos periódicos, ao lado de manifestações estáveis como as Paradas Gay ou as Místicas do Movimento dos Sem Terra, que visam enraizar sentidos e sentimentos entre os correligionários.
Mas como identificar os traços performativos sublinhando a linguagem teatral de uma perspectiva mais restritamente estética? Para concordar com Josette Feral (2008: 197-210), salientar, de início, aquilo que ela contém enquanto ação mais que representação, no sentido mimético que mobiliza, e nisso também concordando com Schechner, que enfatiza o aspecto ligado ao “fazer” ali implicado. Alguns espetáculos brasileiros recentes permitem essa verificação, como Café Com Queijo (1999), criado pelo LUME, onde os intérpretes cantam, dançam e contam histórias, sem que as mesmas possuam relação entre si, mas fulgurem num fundo comum de crenças, valores e sentidos. Mais que personagens e situações, a realização destaca seus intérpretes, o modo como particularizam e executam as ações dadas à vista. Nessa mesma perspectiva estão muitas outras produções, tais como Bugiaria, de Moacir Chaves (1999), O Homem que virou disco voador, criado por Aderbal Freire Filho (2003), Pessoas Invisíveis, da Armazém (2002), Um Homem é Um Homem, do Galpão (2006), Agreste, pela Cia. Razões Inversas (2004), Ensaio Hamlet, da Cia. dos Atores (2006), A Pedra do Reino, pelo CPT/Antunes Filho (2006), Vida, o filme, com Os Dezequilibrados (2005), entre múltiplos outros exemplares, assim como a totalidade da produção do Oficina ou Oi Nóis Aqui Traveiz que, díspares quanto aos propósitos estéticos, possuem em comum as refrações encetadas entre o que é dito e o modo como isso é levado à cena.
Teatro Oficina, Os Sertões
Há, em todos esses casos, uma buscada desnaturalização da representação. Gaivota, tema para um conto curto (2007) levou ainda mais longe as dissociações já presentes em Ensaio Hamlet, duas encenações de Henrique Diaz para a Cia dos Atores, grupo carioca marcado pela pesquisa formal. Baseado em Tchecov, espetáculo à deriva, à beira do precipício ficcional, a questão do fracasso da peça escrita pela personagem Treplev foi tomada como leitmotiv para a concepção de Diaz que, desse modo, a amplificou, tornando real e presente para os intérpretes aquela crise antes ficcional. Desse jogo de possíveis, dessas ranhuras entre o real e o ficcional, a narrativa escoa, estreitando enormemente o intervalo entre atores e personagens. O símbolo da gaivota, tanto como um sonho de liberdade para o artista, quanto como o desejo de Nina de conquistar outras alturas, foi dissolvido entre todas as figuras, tornando-as ambivalentes entre o que fazem em cena e o que gostariam de estar fazendo, intensificando os gestos, declarações, movimentos, marcados todos por essas tensões de enunciação.
Em seu artigo para o programa, Diaz faz alusão ao tempo. Sublinha-o como motor guiando a pesquisa formal, ancorado entre aquele do início do século XX e este do XXI, uma ponte que cada intérprete procurou dentro de si, articulando seu desempenho para fazer vibrar essa tensão, como se percorressem uma fita de Moebius: um vai e vem contínuo, uma recorrente angústia frente à duração, pontilhada, aqui e ali, de sorrisos melancólicos e frases de algibeira que tentam saltar fora desse escorregar sem fim.
Numa nova interpretação para Toda Nudez Será Castigada (2005), a Armazém insistiu nas características obsessivas que pontuam a obra, concentrando nas reverberações imaginárias de Herculano, o viúvo que se apaixona pela prostituta Geni, o vértice de sua narrativa. Tomando-a como um movimento de introjeção (o encenador Paulo de Moraes a situou na cabeça do protagonista), a trama procura colocar em cena aquilo que a imaginação da personagem masculina central se dá em espetáculo: saltos bruscos de cenas e situações, roupas muito maiores que o normal, gente girando nas paredes, camas, cadeiras e utensílios em instável dança pelo espaço, faces e expressões marcadas por acentos expressionistas.
Mais que vivenciarem as criaturas, os intérpretes as mostram, as exibem como exemplares de uma dada configuração mental e social, exacerbada por instâncias afetivas turbulentas e entrelaçada através de diagramas conflitivos. As luzes, a cenografia, os figurinos, tudo ajuda a destacar o buscado descolamento entre intenção e gesto, empurrando a percepção do espectador para o abismo especular, a crise entre o que é e o que poderia ser.
Rainha[(s)] (2008), espetáculo de Cibele Forjaz com Georgette Fadel e Isabel Teixeira, constitui outra demonstração de performatividade exacerbada. O motivo central é a disputa entre as rainhas Elizabeth I e Mary Stuart, tendo a clássica cena escrita por Schiller como alavanca. Mas o que temos em cena é o enfrentamento efetivo das duas atrizes, ora no plano real, ora no fictício, ora no presente, ora no passado, alinhavando os opostos pontos de vista que manifestam frente ao material dramático privilegiado: a disputa pelo coração da cena. Metáfora e realidade, tal coração é também símbolo e emblema, a galvanizar e dar consistência aos enfrentamentos. Num momento de ápice, esse coração jorra sangue, fazendo com que a metáfora deslize do plano simbólico para o concreto, oferecendo-se enquanto espetáculo. Noutro momento o público é solicitado a votar o destino de Mary. A montagem absorve esse movimento performático e o administra, mais uma vez dando à vista sua pronunciada performatividade, agora como demonstração de um rito processual que culmina com a decapitação de Mary.
Nas páginas finais de O teatro pós-dramático Hans-Ties LEHMANN (2007: 401) se interroga sobre o futuro do teatro, argüindo sobre os avatares da representatibilidade. Elucida, então, que o que está em jogo é, ainda, o destino: “se o teatro dramático seguiu o padrão do destino antigo nos moldes de uma narração, do desenrolar de uma fábula, no teatro pós-dramático chega-se a uma articulação que não se baseia na trama, mas na manifestação do corpo: o destino fala aqui a partir dos gestos, não a partir do mythos.” A performatividade está nesse novo modo de fazer falar o destino.
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