sábado, 6 de março de 2010

Faça  você mesmo!


Eleilson Leite

Os jovens continuam fazendo arte no Brasil como em outras épocas. A novidade são os meios, cujo acesso tornou-se mais viável. Por outro lado, a recente ampliação das políticas públicas voltadas para tal segmento da população, também tem impacto importante, tanto para o acesso aos meios como para difusão da produção artística. É nova, também, a afirmação de uma cultura produzida por artistas que vivem nos arrabaldes das metrópoles. E finalmente, o compartilhamento completa o quadro da cultura juvenil contemporânea. A idéia do compartilhar se estabelece, em função da expansão do mundo virtual e da flexibilização dos suportes decorrentes da inovação tecnológica, traz consigo um questionamento: cultura e conhecimento não devem ser mercadorias de acesso restrito. Esses quatro elementos estão produzindo uma conexão muito promissora entre coletivos culturais de classe média, adeptos de concepções anti-capitalistas no mundo da cultura, e grupos de artistas de periferia. Um diálogo que nos remete aos ideais do movimento punk e do hip hop: tenha consciência, ocupe as ruas, faça você mesmo. Junte tudo isso, e temos o caldo de cultura no qual as diferentes juventudes produzem arte, compartilham, articulam circuitos, disputam concepções: em outras palavras, renovam a cena cultural.
Há trinta anos, o movimento punk explodiu na Europa sob o lema: do it yourself. Os músicos aprendiam alguns acordes e se juntavam para tocar em bares, universidades, escolas, ruas - em qualquer lugar. A agenda cultural era divulgada nos fanzines, que se reproduziam aos milhares. Cenário, luz, alta tecnologia, cachê? Nada disso. O que importava era a atitude. E o discurso contra o sistema não tinha meias palavras: “Eu sou um anarquista. Eu sou um anti-cristo…”, gritava em alto e péssimo som o vocalista do Sex Pistols, Jhonny Rottem, deixando os conservadores completamente atordoados. Sobrou também para a Rainha e para a Major EMI, alvos da verve punk-rock implacável dos Pistols.
Paralelamente, o hip hop emergia dos guetos de Nova York em meados dos anos 70, e causou um rebuliço no cenário cultural. Espalhou-se por todo o Planeta. Surgiu como um movimento de rua. Entretanto, diferente do punk, a cultura hip hop adaptou-se bem ao showbizz, em função da popularização do rap. O hip hop autêntico, que une seus quatro elementos: RAP, DJ, MC, o Grafite [1] e um quinto: o conhecimento a partir do qual se formam as posses - já não tem a mesma força no hemisfério Norte. Mas nas periferias dos centros urbanos da América Latina e da África a essência da cultura hip hop ainda mantém seu vigor, mobilizando milhões de jovens.
Os meios justificam os fins: já não é preciso recorrer a corporações para difundir idéias e arte
O ideário estético e político do punk e do hip hop ainda influencia corações e mentes de grupos juvenis urbanos, que se cruzam em diferentes circuitos culturais das metrópoles brasileiras. Consciência, engajamento, rima, ritmo, força da palavra escrita e falada, atitude, intervenção e a convicção de que “posso fazer e constranger o sistema” é o que marca a arte produzida nas periferias e por coletivos juvenis universitários de classe média que se articulam sob o lema da desmercantilização da cultura [2]. Esses últimos, mais próximos do punk e de toda sua derivação [3]; os primeiros umbilicalmente ligados ao hip hop.
O diálogo entre esses dois universos vem sendo cada vez mais freqüente, em virtude da ampliação do acesso aos meios. A redução dos custos de produção de CD, DVD e as infinitas possibilidades de difusão da criação artística pela internet estão abrindo oportunidades de exposição antes inimagináveis, mesmo para os jovens de classe média. Até uma década atrás, fazer um filme, gravar um CD, publicar um livro, era algo que passava, necessariamente, por corporações — fossem elas pequenas, médias ou grandes. Hoje em dia, os jovens produzem seus trabalhos em estúdios caseiros ou com equipamentos de uma ONG parceira, licenciam e difundem no Creative Commons, My Space, Overmundo ou em outros espaços virtuais de compartilhamento. Em menos de 24 horas, alguém já teve acesso, baixou, reproduziu, criando, assim, uma cadeia de difusão planetária, onde todo tipo de oportunidade aparece, inclusive, para apresentações remuneradas. Nessa nova cultura, os meios justificam os fins.
Assim é o caso do B Negão, rapper carioca que foi integrante do extinto Planet Hemp. Em 2003, ele começou a disponibilizar suas músicas na Internet. O retorno foi imediato. Internautas de todas as partes do mundo baixaram suas músicas e passaram a divulgá-las em rádios alternativas, festas e outros espaços. Algum tempo depois, chegaram os primeiros convites para apresentações na Europa. Começou com um show de curta temporada numa casa de espetáculos com capacidade para 300 pessoas, em Portugal, em em 2005. Na mesma turnê, lotou uma Casa na Espanha com capacidade para 2 mil pessoas. No ano seguinte, participou de um Grande festival na Dinamarca para 50 mil pessoas.
Na periferia do Distrito Federal, outro rapper, chamado GOG, um dos nomes mais importantes do hip hop brasileiro , criou um selo próprio - Só Balanço - e disse não às grandes gravadoras. Além de disponibilizar algumas de suas canções pela internet, declarou toda a sua obra como domínio público. Em um de seus discos, GOG gravou uma canção chamada A Ponte, uma referência crítica muito criativa à construção da Ponte Juscelino Kubitschek de Brasília. Nesse rap, ele sampleou uma canção homônima do compositor Lenine. A música chegou aos ouvidos do cantor pernambucano. Numa atitude de desapego aos rigores da proteção autoral, Lenine não só aprovou a colagem, como convidou GOG para uma participação muito especial em seu DVD. Essa participação deu uma calibrada na carreira do rapper brasiliense. Resultará na ampliação de suas produções no Só Balanço, que hoje tem como nome de ponta entre seus artistas o MC - ou cantador, como ele prefere - Rapadura, jovem revelação que é um dos mais talentosos do Brasil na atualidade, assegura GOG.

A produção das periferias chega aos livros e abre debate: destruir ou abrir espaço no mercado editorial?


Em 2005, motivado pela idéia do faça você mesmo, o poeta periférico paulistano Allan da Rosa resolveu publicar seu próprio livro. Mas ele não procurou uma dessa editoras que fazem livro sob encomenda como a Scortecci ou Livro do Autor, para citar duas empresas de São Paulo especializadas no ramo. Da Rosa, como é conhecido, queria um livro cujo padrão gráfico fosse ele próprio, expressão do conteúdo de seus poemas. Fez um belo livro de poesias, escrito à mão, em papel reciclado e com a lombada perfurada por qual passam fios vermelhos de novelo de lã. Assim surgiu Vão, sua obra seminal. Com o apoio da ONG Ação Educativa e de uma gráfica, imprimiu 500 exemplares do livro. Esgotou a tiragem em quatro meses. Produziu mais uma edição, que acabou em menos de um ano. Allan vendeu, de mão em mão, na porta de teatro e cinemas, em palestras, eventos e oficinas.
O êxito do livro Vão despertou a veia de editor do poeta Allan da Rosa. Com a mesma estratégia, ele publicou o livro De passagem, mas não a passeio, da Dinha – pseudônimo de Maria Nilda, jovem poeta de 27 anos moradora da periferia da Zonal Sul de São Paulo. Dinha esgotou seu livro, publicado em 2006, em menos de um ano. Começou aí a Selos Toró que, com dois títulos, já se estabelecia como o primeiro empreendimento de literatura de periferia que se tem notícia. Hoje, o catálogo tem dez títulos. A maioria dos autores tem menos de 30 anos e todos são moradores da periferia paulistana. Os livros custam R$ 10,00 na quebrada e R$ 20,00 na porta dos cinemas na avenida Paulista. Não há intermediário: o autor fica com todo o recurso captado na venda. A cópia é livre, mas todos querem ter os livros de feições artesanais.

O caso da Edições Toró, em particular, e de modo geral o movimento da literatura periférica, denota uma tensão importante nessa aproximação da cultura de periferia com os coletivos de jovens de classe média que defendem a desmercantilização da cultura. Allan da Rosa e Dinha, além de Sacolinha, Sergio Vaz e Alessandro Buzo assinaram contrato com a Global Editora em 2007. Esses autores estão inaugurando uma coleção denominada Literatura Periférica. Essa oportunidade lhes confere uma condição de reconhecimento que responde a uma busca de anos. Sentiram-se muito satisfeitos ao receberem 50% de adiantamento do direito autoral de uma edição no ato da assinatura do contrato. Em contrapartida, a editora fica com a posse dessas obras por cinco anos (para edição em livro) e é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, que proíbe a reprodução de qualquer parte do livro sem prévia autorização, sujeitando os infratores aos rigores da Lei de Direito Autoral. Isso causa preocupação aos militantes contrários à propriedade intelectual.
Questionado sobre a contradição, um dos autores disse: “são regras estabelecidas; agora que estamos chegando, querem acabar com o mercado?”, indignou-se. Os ativistas da livre circulação do conhecimento, afirmam por outro lado que é justo remunerar o escritor por sua criatividade. Entretanto, argumentam que não é correto que só alguém com dinheiro na mão possa ter acesso à obra do Sergio Vaz, por exemplo. Nesse caso, o poeta da Cooperifa [4], vem disponibilizando suas poesias no seu blog, como, aliás, já fazia antes de ser publicado. Resolvida a questão? Talvez. O fato é que uma corporação ganha dinheiro com um produto cultural e isso inquieta os coletivos mais radicais da desmercantilização da cultura. O debate está apenas começando e tem sido muito positivo [5].

No cinema, uma alternativa: remunerar a produção e permitir a cópia livre

Tudo fica mais complicado quando se trata de um filme. E é exatamente em tal linguagem artística que os jovens de vinte e poucos anos vem se dedicando com mais ímpeto. Mas nesse campo, assim como na música, há muito espaço para difusão na internet. E nem precisa ser alternativo para circular na grande rede. Exemplo maior do que o filme Tropa de Elite não poderia haver. Antes mesmo de entrar em cartaz, a obra circulou na Internet e pôde ser baixada aos milhares, em qualquer parte do mundo.
Se o autor ganha pouco na venda do livro, menos ainda recebe o cantor e compositor na venda do CD, pior é a situação do cineasta na comercialização de seu filme. Aí a equação pode ser resolvida na remuneração da produção, independente da venda. Nesse caso, é importante a ação do Estado no estímulo à criação cinematográfica. Não por acaso, o setor do audiovisual é o que tem um arcabouço legal mais sofisticado. É, também, o produto com os custos de produção mais elevados.
Mas não se faz filmes apenas pensando no grande circuito. Diego e Daniel, que poderia ser nome de mais uma dupla sertaneja, são, na verdade, dois jovens cineastas que aprenderam roteiro, filmagem e edição num curso de formação da ONG Ação Educativa, em São Paulo. A partir daí começaram a fazer seus filmes e constituíram o grupo NCA – Núcleo de Comunicação Alternativa. A obra de estréia surgiu em 2006: Imagens de uma Vida Simples, documentário sobre o artista plástico, poeta e dramaturgo Solano Trindade. Com esse filme, participam de mostras, fazem exibições em Escolas seguidas de palestras e percorrem toda a periferia paulistana, exibindo em qualquer lugar que lhes dê a oportunidade de divulgar seu trabalho. E para viver? São cinegrafistas. Atuam em projetos de ONGs, além de realizar seus próprios projetos buscando financiamento em editais focados em pequenas produções. Até onde isso vai? Não sabem. Esperam que pelo menos seja assim enquanto forem jovens.
O tema das políticas públicas para a juventude é uma pauta desta década. Até o final dos anos 90, pouquíssimas iniciativas se efetivaram nesse campo. Uma dessas raras ações foi a criação do Centro de Referência da Juventude da Prefeitura de Santo André, no ABC Paulista, no final daquela década. E a criação de espaços públicos para os jovens tem sido uma constante entre as políticas para o segmento juvenil [6]. Mas uma ação que se tornou uma referência de política pública, consagrada em lei e que tem um impacto extremamente positivo, não está dentro de nenhum equipamento de amplas instalações erguido numa região pobre qualquer de uma grande metrópole.
Trata-se do VAI – Valorização de Iniciativas Culturais, programa de fomento à cultura da cidade de São Paulo dirigido a indivíduos e grupos preferencialmente jovens de regiões pouco atendidas pelo poder público. Criado durante a Gestão da prefeita Marta Suplicy, o VAI vem abrindo editais a cada ano, e na sua terceira edição, em 2007 , contemplou 100 propostas entre 765 concorrentes, destinando uma verba de R$ 17 mil para cada um desenvolver seu projeto. Talvez, seja a verba orçamentária mais bem gasta da prefeitura paulistana: R$ 1,7 milhão financiando pequenas revoluções no cotidiano de grupos juvenis.
O selo Toró, liderado pela Allan da Rosa foi um dos grupos agraciados no último edital. Conseguiu, com a verba, publicar cinco livros com tiragem de 600 exemplares cada. Por meio do VAI, Akins Kinté, de 22 anos e Elizandra Souza, de 24 anos, freqüentadores de saraus na Periferia de São Paulo, concretizaram o sonho de ter seus poemas impressos num livro. Uma obra em dupla face, metade para cada um. Dois jovens negros, suburbanos. Ela da Zona Sul; ele, da Leste. Ambos venderam seus exemplares em menos de seis meses e, com o dinheiro arrecadado, bancaram uma nova tiragem. Elizandra, que ingressou no curso de jornalismo da Universidade Mackenzie, beneficiada pelo Pró-Uni, hoje trabalha como estagiária na sua área, dá palestras e participa de debates. Akins segue a mesma trilha, ainda almejando o sonho da faculdade. Mas expandiu suas aptidões artísticas e produziu, junto com dois jovens cineastas diletantes, um documentário sobre literatura e negritude, chamado Vaguei nos livros e me sujei com a m… toda.
Na mesma direção do programa paulistano, porém com um investimento maior, há no plano federal, a ação dos Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura. São mais de 600 grupos apoiados em todo o Brasil, recebendo cerca de R$ 150 mil cada para desenvolver seus projetos. Essas políticas têm o mérito de perceber o movimento da cultura feito por grupos. São vontades criativas que se concretizam na dinâmica da ação coletiva, movimentando a comunidade, interferindo na realidade. No VAI, 90% são jovens. Nos Pontos de Cultura, há uma estimativa de pelo menos 60% dos grupos contemplados estarem na faixa dos 18 a 29 anos. Em ambos os casos, a maioria está nas periferias, vilas e assentamentos no interior do País, nos morros e palafitas.
O que está em jogo hoje na cultura produzida pelos jovens, embora não só pelas garotas e rapazes de vinte e poucos anos, é a emergência da criação. E o acesso às novas mídias tem reforçado essa questão. Sob a bandeira da inclusão digital e democratização do acesso aos meios de comunicação, está a idéia de que é possível fazer, escrever, compor, interferir, difundir. Daí a pertinência do debate sobre propriedade intelectual e livre circulação do conhecimento e da cultura. E, se são novidades as tecnologias, não é nova a idéia de apropriação dos meios, da afirmação da condição juvenil pela cultura. A questão que o movimento punk e o hip hop trouxeram nos anos 1970, parece estar emergindo de uma forma decisiva. Uma revolução está em curso.
Não é por um acaso que assistimos a banda Radiohead, uma das mais populares do mundo, descendente do punk-rock, romper com sua gravadora e comercializar seu último disco exclusivamente na Internet, dando ao consumidor a condição de definir o preço, incluindo a possibilidade de baixar gratuitamente as músicas. Não menos coerente é observar que muitos grupos de rap prensam seus próprios CDs e distribuem diretamente aos camelôs, como faz Dudu de Morro Agudo, do coletivo Enraizado do Rio de Janeiro. “Quero que o maior número de pessoas ouçam minha música, eu tenho uma mensagem para passar”, afirmou Dudu, no debate sobre o tema no Debate Cultura e Conhecimento Livres [7]. Nessa mesma linha e com com muito mais ênfase, grupos de rap de Belém do Pará e demais capitais do Norte do Brasil articulam-se no Movimento Hip Hop da Floresta. A capital paraense é pródiga nesse tipo de circulação da cultura. Nas famosas festas de aparelhagem, o público compra o CD com as músicas tocadas durante a balada, na saída do local do evento.
A produção cultural juvenil articula-se em grupos, invariavelmente pequenos . É preciso observar essas micro-agremiações para se ter uma idéia da diversidade e complexidade das formas de expressão da cultura feita por jovens [8]. Mas os grupos se conectam em circuitos, às vezes, formando um contorno geográfico restrito a uma localidade, às vezes, sem apego a fronteiras. Ao se conectarem, formam grandes movimentos, abalam as estruturas e põem de ponta-cabeça os parâmetros estabelecidos, os cânones. Elizandra, Akins, Sacolinha, Allan da Rosa, Daniel, Diego, o pessoal do Epidemia, e outros que figuraram neste texto, estiveram conectados (presencial ou virtualmente) na Semana de Arte Moderna da Periferia que rolou em novembro na Zona Sul de São Paulo. “A arte que liberta, não pode vir da mão que escraviza”, diz um dos versos do Manifesto da Antropofagia Periférica, que serviu de liturgia ao evento. Esses e muitos outros jovens empoderaram-se e fazem, eles mesmos, a arte que os liberta.


[1] Big Richard, Hip Hop – Consciência e Atitude, São Paulo, 2005[2] O Epidemia e o CMI – Centro de Mídia Independente, baseados em São Paulo, mas com ramificações em várias partes do Brasil ( O CMI é internacional ) e o Mídia Sana, coletivo de Recife, são exemplos desse tipo de organização que, embora não se denomine como juvenil, tem ampla participação de jovens.
[3] Da fonte do punk-rock , saíram diversos movimentos como os dark e new wave nos anos 80; o grunje nos anos 90 rendeu ao mundo o Nirvana e na atual década há releituras do punk cruzadas com culturas locais, cujo o expoente mais criativo é o músico franco-catalão Manu Chão.
[4] Sergio Vaz, autor do livro Colecionador de Pedras ( Global, 2007), é fundador e um dos coordenadores do Sarau da Cooperifa que, há seis anos, reúne toda quarta-feira, cerca de 200 pessoas num bar na Periferia da Zona Sul de São Paulo.
[5] Esses coletivos e artistas de periferia, liderados pela ação Educativa e pelo Epidemia, realizaram em outubro e novembro passados em São Paulo e Fortaleza, o Ciclo de Debates: Conhecimento e Cultura Livres, Disputas, Práticas e Idéias, um evento financiado pelo Programa Conhecimento e Cultura do Ministério da Cultura. Essas e outras questões foram tratadas no evento.
[6] Sob a Coordenação de Marília Spósito, acaba de sair pela Global Editora, o livro Espaços Públicos e tempos Juvenis – um estudo de ações do poder público voltadas para jovens em cidades e regiões metropolitanas brasileiras. A coletânea traz 12 estudos de caso, entre 74 experiências públicas mapeadas pelo Projeto Juventude, Escolarização e Poder Local, cujos relatórios encontram-se disponíveis no site da Ação Educativa .
[7] Cf. Nota anterior
[8] Cf. Magnani, José Guilherme e Souza, Bruna Mantese ( org.) – Jovens na Metrópole – Etnografia de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade, Terceiro Nome, São Paulo, 2007 – Esta obra, que reúne 10 estudos etnográficos sobre juventude em São Paulo, apresenta as categorias: pedaço, mancha, trajeto e circuito , por meio das quais é possível observar elementos de identificação de grupos, seus enlace, permanências e territorialidades.




Le Monde Diplomatique

http://diplo.uol.com.br/2007-12,a2102




Fazendo cena, a performatividade

Edélcio Mostaço

 
Não te dei nem rosto nem lugar algum que seja propriamente teu, tampouco um dom que te seja particular, oh, Adão! Não te fiz nem celeste, nem terrestre, nem mortal, nem imortal, a fim de que sejas tu mesmo, livremente, à maneira de um hábil escultor, o encarregado de forjar a tua própria forma.
Pico della Mirandola, Oratio de Hominis Dignitate

A maior parte dos seres humanos constrói moradias, dança, cozinha, assiste jogos esportivos, estuda, casa ou descasa, viaja, conta histórias, caça algum animal - ainda que com tubos de aerosol. Do mesmo modo, desempenha papeis sociais: são pais, filhos, tios, avós, cunhados ou sobrinhos, dedicando-se às mais diversas profissões e atividades dentro das sociedades, conformando uma múltipla e densa rede de interações. O que há em comum em tudo isso é a performance.
Noção moderna, embora derivada de um antigo verbo inglês , passou a maior parte do tempo despercebida enquanto tal, provavelmente em função da quase naturalidade que infunde: fazer ou desempenhar são hábitos tão entranhados no dia a dia que dificilmente nos damos conta de como os realizamos, a partir de que perspectiva e seguindo que modelos.
Os estudos performáticos – conjunto de noções, conceitos e diretivas que agrupa o dimensionamento das performances - devem a Richard Schechner sua primeira reunião e difusão. Após ter realizado sua formação nas universidades de Cornell e Tulane foi ele o fundador, em 1967, na cidade de Nova York, do Performing Group, coletivo teatral voltado ao “environmental theatre”, aquele praticado fora das tradicionais salas de espetáculos e mobilizando procedimentos estéticos que visavam estreitar as relações entre a vida e o teatro. Tornando-se professor da Tisch School of Arts, vinculada à Universidade de Nova York, ajudou a reformular o departamento de Drama que, desde 1980, passou a denominar-se de Estudos da Performance, tornando-se ainda, seis anos após, o editor da revista The Drama Review, agora sub-intitulada revista de estudos performáticos.

 



Sua influência, desde então, não parou de crescer em todo o mundo e, pouco a pouco, os estudos performáticos foram conquistando e sedimentando novos espaços de aprofundamento e interesse, quer nos EUA quer na Europa. Os nomes do antropólogo Victor Turner e da professora de estética Bárbara Kirshenblat-Gimblett contam-se entre os primeiros colaboradores diretos de Schechner, aos quais se somam os de Michel Kirby, Shannon Jackson, Ian Maxuel, Diana Taylor, Peggy Phelan, Ronald J. Pelias e James VanOosting, acrescidos de inúmeros outros nos mais diversos quadrantes do planeta. 

 Here, there and everywhere


 
É muito importante distinguir essas categorias uma da outra. ‘Ser’ pode ser ativo ou estático, linear ou circular, expandido ou contraído, material ou espiritual. Ser é uma categoria filosófica que aponta para tudo aquilo que as pessoas tomam como ‘realidade última’. ‘Fazer’ e ‘mostrar fazendo’ são ações. Fazer e mostrar fazendo estão sempre em fluxo, mudando todo o tempo – é a realidade, tal como a percebeu o filósofo pré-socrático grego Heráclito. Ele formulou um aforismo para esse fluxo: ‘ninguém pisa duas vezes no mesmo rio, nem toca uma substancia mortal duas vezes da mesma maneira’ (fragmento 41). O quarto termo, ‘explanar mostrando como se faz’, é um esforço reflexivo para se compreender o mundo da performance e o mundo como performance. Tal compreensão é, usualmente, aquela empreendida por críticos e acadêmicos (SCHECHNER, 2007: 28).
 A performance, portanto, “marca a identidade, submete o tempo, remodela e adorna o corpo e conta histórias. Performances – nas artes, nos rituais ou na vida cotidiana – são ‘comportamentos restaurados’, ‘comportamentos duas vezes agidos’, ações praticadas que as pessoas treinam e buscam”, afirma Schechner (2007: 28), insistindo sobre os procedimentos repetitivos inerentes à tais ações ou condutas, em detrimento daqueles fortuitos ou inovadores, inéditos ou nunca antes empreendidos.
Essa noção de comportamento restaurado foi pinçada dos estudos de Erving Goffman dedicados à observação sociológica da sociedade, especialmente quanto aos fenômenos interativos que se produzem entre uma pessoa e seus circunstantes, no sentido de infundir uma influência sobre eles ou almejar algum efeito (GOFFMAN, 1985: 23). Tais comportamentos podem ser isolados, quando tomados como “pedaços” ou “seqüências” manejáveis de ações, como faz um diretor cinematográfico com as tiras de um filme: manipula-as e monta-as segundo seus critérios, dotando o indivíduo de um repertório delas, que as manejará ou as empreenderá sempre que desejado ou necessário, o que pode durar muito (como em rituais e dramatizações sociais) ou pouco (como em gestos, danças ou mantras). São elas empregadas em todas as espécies de desempenhos, do xamanismo ao exorcismo e ao transe, dos múltiplos ritos às danças, do teatro estético aos rituais de passagem e iniciação, da psicanálise ao psicodrama e à análise transacional (SCHECHNER, 2000: 107).
Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros “eus” que cada um alberga dentro de si, com distintas funções, como age em diferentes situações ou diante de momentos qualificados, dando resposta às motivações provenientes da vida; seja nas condições íntimas, domésticas ou coletivas. Ou seja, há a preocupação em se captar os modos como cada um se representa a si mesmo diante da multiplicidade de ocasiões que enfrenta, enfeixando não apenas traços da personalidade, como também da identidade e da conduta, a lhe fornecer algum tipo de coerência ou continuidade existencial (psíquica, imaginária, existencial, simbólica, cósmica etc). As diferenças entre como o indivíduo se representa a si mesmo num sonho, ao voltar a sentir um trauma infantil, ao narrar o que fez ontem ou como se projeta enquanto imagem no futuro não se afastam das funções sociais do eu antes referidas por Goffman, existindo entre elas apenas modalidades de grau, mas não de natureza.
É por essa razão que os estudos performáticos não isolam as atividades humanas em camadas ou compartimentos estanques – arte, ritual, cotidiano, cerimônia laica ou sacra -, entendendo que tais instâncias fundam e advém de uma solidariedade global, formando interconexões e subsidiando em modo amplo a existência dos indivíduos. Tais dimensões dificilmente têm suas origens ou inícios claramente discerníveis para cada qual, pois são heranças culturais, longevas, arcaicas, perdidas no tempo; assim como nem sempre ele sabe explanar como, onde, ou porque aprendeu a fazer ou faz as coisas desse modo.
Para abarcar essa multiplicidade de aspectos, Schechner propõe um diagrama interativo composto de quatro dimensões, sendo elas: a subjuntiva (dimensão mítica ou ficcional), a que se opõe a indicativa (real ou histórica); havendo oposição também entre o passado e o futuro que as atravessa. Desse modo, o “eu”, ao transitar entre uma e outra, torna os sucessos ou fracassos interdependentes entre si e vinculados a um quadro amplo de vetores. A noção de ensaio é aqui central, indicando as tentativas, procuras, repetições que estão na base desses comportamentos catalogados e empreendidos.
Ao afirmar esse caráter repetitivo da performance, Schechner efetua um contraponto em relação à performance art, tal como ela foi concebida, praticada ou teorizada por uma infinidade de artistas contemporâneos das mais diversas formações e/ou vínculos a movimentos artísticos (GOLDBERG, 2006; GLUSBERG, 1987; CARLSON, 2004). Embora reconheça as afinidades existentes entre os dois conceitos (bem como, suas diferenças) – ambos emergindo, simultaneamente, no cadinho multiforme da contracultura que marcou os anos 1970 – as duas acepções galvanizam diferentes enfoques, possuem metas diversas, conformando coisas não-redutíveis uma à outra (SCHECHNER, 2006: 28-51). Enquanto instância artística, a performance art não deve ser separada de algumas práticas estéticas que se desenvolveram, quase simultaneamente, em várias partes do mundo, e que possuem no happening, na action painting, na live art , na arte conceitual, na body-art, na atuação do movimento Fluxus não apenas suas origens como seus procedimentos mais relevantes. Ela está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência corporal, na natureza indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do artista numa situação extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo ou corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua ação poética busca a transgressão, a ruptura, o corte – tudo o que é marcado como diferença, enfim -; responsáveis maiores pelas suas características ontológicas de gesto original, a saltar fora da série das repetições, dos ensaios, das restaurações.
Tomando o corpo do artista como locus preferencial, a performance art aponta para seus poderes e avatares, apostando no desejo como motor para transformar o que visa infundir, máquina simbólica capaz de produzir intensidades e aderências. Jorge Glusberg assim a situa:

é o lugar de reencontro permanente, para quem jamais tomou contato com o que ela experiencia. A performance cria, principalmente, ao resgatar o rejeitado e não ao explorar o desconhecido. Um reencontro com a experiência que o homem médio não pode buscar, dado seu limitado contato com o mágico domínio da arte (GLUSBERG, 1987: 103).

Se tais são as perspectivas que separam as duas concepções, é preciso destacar também as afinidades. E estas estão no horizonte comum de onde partem. Para fazer frente à repetição, a performance art costuma recorrer, com freqüência, aos rituais estabelecidos, aos poderes do corpo e suas reverberações, à magia e às práticas primitivas, naquela zona pouco clara entre o instintual e o cultural, razão pela qual toma a vida em seus aspectos especificamente performáticos como ponto de incisão e território de exploração. O performer busca infundir, com tais operações, relações derrisórias, de zombaria, de transgressão, de ultrapassagem, irônicas ou de desrecalque, críticas ou de desvirtuamento, empregando estratégias que visam ressaltar sua originalidade enquanto mago semiótico. Mas delas não se aparta, ao contrário, toma-as como ponto de referência para suas operações; o que permite se dizer que a performance art representa o lado crítico da performance, sua contraparte intelectualizada e inovadora.
Com o passar do tempo um outro aspecto da performance veio se configurando, surpreendendo agora o outro lado da equação: o público. Ele começou a ser estudado e difundido por Paul Zumthor enquanto escuta, em decorrência do desenvolvimento de estudos voltados à oralidade por ele empreendidos, a partir das pioneiras incursões da Escola de Constança ao longo dos anos de 1960 em torno da recepção.
Há, para Zumthor, uma performance da audição e da leitura – e, por extensão, de toda recepção -, instância que, até então, nunca esteve claramente desvelada para os estudos performáticos. Os distintos modos em que a audição da literatura oral ou a leitura do texto escrito são empreendidos, sentado, em pé, concentrado, disperso, com ou sem ruído, em movimento ou parado etc., influem diretamente sobre as relações criadas com aquele texto, fomentando apreensões e prazeres diferenciados frente ao poético. Atenção especial deve ser creditada aos ritmos corporais do “leitor”, como são eles afetados e/ou alterados em função do modo como ocorre esse ato:

Se admitimos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de ‘poética’, e uma outra, a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000: 41).

Sem descurar as intenções e qualidades que marcam a pragmática e suas preocupações com o universo do sentido (sobre as quais Searle e Austin forneceram os primeiros gabaritos de intelecção, complementados, a seguir, pelos estudos semiológicos e semióticos), Zumthor grifa o papel e a função nela ocupados pela voz; ou seja, essa instância corporal subjacente a toda pragmática, quer se trate de palavra oral ou escrita. Ficam ressaltados, desse modo, os efeitos de dramatização que lhe são subjacentes, donde emerge uma intensa teatralidade adensando as comunicações humanas; fato, por sua vez, antes também diagnosticado por Goffman ao tratar das representações do eu na vida cotidiana. Parece, assim, fechar-se um circuito de noções: tanto nos fenômenos da comunicação (uso da palavra), quanto nos da praxiologia (gestos, posturas e deslocamentos intermediando as relações inter-pessoais), ou nos desempenhos sociais que buscam alguma eficiência (a dramatização social), nos quais a performance emerge como base comum, denominador que tudo abarca e tudo submete.
Um último e fundamental esclarecimento faz-se necessário: embora tenha nascido no ambiente teatral, os estudos performáticos não apenas abarcam as distintas modalidades reconhecidas como tal mas as subsume às suas grandes determinações; ou seja, o teatro – entendido em sua pluralidade de manifestações em todo o mundo, cumprindo diferentes funções sociais em cada cultura – é tomado como uma parte dos estudos performáticos. No caso do teatro ocidental, tomado como teatro estético, possui um curso histórico e distintos formatos cênicos, passíveis de serem percebidos e estudados na pluralidade de traços que o demarcam como função primariamente ligada ao entretenimento.
Percebidas essas grandes linhas que demarcam os estudos performáticos e as diversas acepções que os circundam, verifiquemos agora os pressupostos que os sustentam.

                                Flávio de Carvalho desfilando sua saia tropical pelas ruas de são Paulo


Dialogismo intercultural

Como observado, fazer ou desempenhar ocupa função primordial na vida humana, individual e coletiva.

Antes dos estudos da performance, os pensadores do ocidente achavam que sabiam exatamente o que era e o que não era ‘performance’. Mas, de fato, não existe um limite histórico ou cultural fixável para distinguir o que é ou não é ‘performance’. Ao longo do tempo novos gêneros foram somados e outros caíram fora. A noção básica é a de que qualquer ação que seja estruturada, apresentada, marcada ou exposta é performance. Muitas delas pertencem a mais de uma categoria ao mesmo tempo. Um jogador de futebol americano, por exemplo, correndo com a bola e apontando um dedo para cima depois de um tento convertido está performando uma dança e executando um ritual como parte de seu desempenho profissional enquanto astro popular (SCHECHNER, 2008: 2).

Essa extensa rede de relações conforma o tecido social no qual estamos atados, uma interconexão de significados, como entende GEERTZ (2008) a cultura, algo comparável à semiosfera evocada por Iuri Lotman ou ao dialogismo proposto por Bakhtin, inextrincáveis liames entre signos e signos de signos que infundem e desdobram significados, ao mesmo tempo em que impelem as ações a se ligarem umas às outras, engendrando a reciprocidade entre comportamentos ativos e reativos.
Estamos, portanto, no denso território da representação. Se Platão e Aristóteles podem ser tomados como precursores, naquilo que diz respeito às implicações em torno de sua natureza, o fenômeno representacional não deixou de estar presente ao longo de toda a história intelectual do ocidente como instância decisiva mediando a apreensão do real. Após as interpretações renascentistas, barrocas e clássicas, o século XIX iludiu-se com a possibilidade de uma decodificação objetiva e positiva das representações humanas, conformando uma modernidade segura de si e convicta de seus pressupostos. A pós-modernidade, todavia, obrigou a revisão de tudo isso.
A consideração do Outro, como destacada por LACAN (1978) na década de 1950, criando o fantasma de si diante do espelho e a ambígua sensação de divisão entre o je e o moi não está distante daquelas especulações de Bateson e Goffman, ao final daqueles anos, ao analisarem a qualidade das comunicações intersubjetivas encravadas nas representações do eu na vida cotidiana, marcadas pela ocorrência de vazios e contra-sentidos. Ao mesmo tempo, J. L. Austin estava investigando os primórdios da pragmática, salientando o que há de performatividade subjacente aos atos da fala, quando a linguagem é empregada enquanto ação ou para designar atos perpetrados (como em contratos, casamentos, rituais, juramentos, batismos, promessas etc). A emergência do estruturalismo, do outro lado do Atlântico, fez aflorar os paradigmas imanentes ao fluxo histórico e social, salientando a repetição com que se apresentam no jogo social – enquanto pluralidade de vetores simultâneos, nos planos econômico, histórico, sociológico, antropológico, lingüístico etc. -, que influirão, em curto período, também sobre as chamadas ciências duras, como a matemática, a física ou a biologia. O mundo da estrutura não deixou intocado nenhum campo de conhecimento.
Nessa passagem mediada entre os anos de 1960 e 1970 surge com ênfase o pós-estruturalismo que, nos EUA, recebeu o impróprio nome de french theory ou, simplesmente, theory. Foi a motivação maior para que nomes como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jean-François Lyotard, Guy Debórd – entre outros – se transformassem em referências indispensáveis naquele momento, em função das revisões a que submetiam o estruturalismo. Muitos deles, convidados por universidades americanas, ministraram cursos ou dirigiram seminários de estudos em vários pontos do país, fomentando o alastramento do pós-estruturalismo, do desconstrucionismo, da crítica aos modos tradicionais da representação (CUSSET, 2008).
Esses novos aportes engendraram um redimensionamento não apenas das ciências humanas e da arte como, sobretudo, embasaram análises interdisciplinares efetivadas a partir de novos olhares e percepções. Foi a partir desse novo horizonte que Wolfgang Iser pode então afirmar em How to do theory:

Falando em geral, a ênfase das teorias modernas está nas relações entre o trabalho de arte, a disposição de seus receptores e as realidades envolvidas em seu contexto. As teorias traduzem a experiência da arte em conhecimento que – orientados por critérios humanos – propiciam uma oportunidade de elevar ao máximo a compreensão, refinando as faculdades perceptivas, e transmitindo um conhecimento não falsificável. Além disso, as teorias servem para explicar as funções sociais e antropológicas da arte, servindo como ferramentas cartográficas para a imaginação humana, o que é, afinal, o recurso último que os seres humanos possuem para sustentar a si próprios (ISER, 2007: 9).



A relevância e o crescimento da theory coincidiu, nos EUA, com o desenvolvimento dos estudos performáticos, ambos emergindo do mesmo influxo contra-cultural que inquietou e impulsionou o período. Em vários casos, tais estudos se entrelaçaram e estabeleceram conexões entre si. Os vínculos mais palpáveis são aqueles percebidos nos estudos culturais, nas pesquisas em torno de questões pós-coloniais e os associados aos novos territórios de militância, como os queer studies e os estudos feministas – onde, talvez, a maior originalidade esteja em Judith Butler -, no modo como destacou a questão da construção de gênero como um ato performativo. Mas não apenas conexões assemelhadas podem ser verificadas, havendo novos desenvolvimentos em comum, como veremos a seguir, sobretudo quanto à performatividade, conceito chave cintilando nesse novo universo teórico.



Ser como ser

Foi o filósofo norte-americano J.L. Austin quem introduziu o conceito de performatividade, em 1955, ao lançar How to do things with words, um conjunto de palestras onde se debruçou sobre a natureza da língua quando efetiva ou registra atos. Frases como “eu prometo que ...”, “não aceito”, “aposto que ...”, “peço desculpas”, “farei exatamente isso” etc. referem ações concretizadas ou por fazer como compromissos de execução, numa inseparável articulação entre gesto, atitude e discurso. Através dos speech acts, na mesma linha de raciocínio, seu discípulo J. R. Searle avançou tais investigações, afirmando que situações e realidades são construídas através deles. Os dois autores se referiram ao teatro, como exemplo onde tais situações – porque imersas na ficcionalidade – não deveriam ser tomadas como “sérias”, tratando-se então não de performance mas de performatividade. Ou seja, atos “falsos”, destinados “à ilusão”, sem validade efetiva.
Ao retomar essa questão, Jean-Fançois LYOTARD (1971: 87) salientou que, em nosso momento sócio-cultural marcado pela duplicidade, inconstância e embaralhamento de limites entre real e fictício, aquelas afirmações necessitariam ser revistas, à luz de novos enquadramentos, especialmente no que concerne ao poder político e à função das ciências nas sociedades. Nessa nova cartografia pós-moderna, também identificada como a própria estrutura do capitalismo tardio ou ultra-capitalismo , a esfera da cultura ganhou ampla vantagem, um novo campo a ser explorado no coração da máquina de fazer dinheiro.


“O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção de mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma função e uma função estrutural cada vez mais essencial à inovação estética e ao experimentalismo. [...] ... a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de classes, o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror (JAMESON, 2007: 30).


Ou seja, há uma nova lógica presidindo as relações sociais, intermediando a produção de imagens, imiscuindo-se na esfera das representações, complicando e desestabilizando as relações entre o real e o fictício, quase sempre as invertendo – tomando-as como uma nova organização dos signos, a sociedade do espetáculo, como a percebe Guy DEBORD (2003). Tanto Lyotard (que opera através da lógica do simulacro) quanto Jameson (que opera através da dialética do reflexo) dedicaram especial atenção às mídias, às cerimônias e protocolos do poder político, aos conglomerados empresariais desdobrados em múltiplas direções de especulação (holdings), às ciências voltadas para o desenvolvimento de implementos tecnológicos (especialmente digitais) que, dada sua progressão geométrica, mais adensaram essa infindável produção de mensagens, imagens, bancos de dados e manipulação de informações. Adentramos, assim, uma era que, para outros autores, é pura semiose e extensão de imagens e informações entre si, onde despontam ciborgues, clones, avatares, realidade virtual, duplicações e replicações que, caracterizada como cultura das mídias, ultrapassou a anterior cultura de massas (SANTAELLA, 2004).
Se toda cultura é mediação – quando tomada em sua realidade semiótica e dentro dos parâmetros da semiosfera -, não faz muito sentido insistir na noção de simulacro, como quer Lyotard, uma vez que tal viés deriva de uma pressuposição metafísica, mas pensar que a cultura não é um mundo à parte, mas sim uma estrutura simbólica dinâmica, interfaceada, plurimorfa e organizada em redes, sempre uma complexa manifestação material do dialogismo. E que o ego, antes de ser uma estrutura unitária ou produto de uma emanação celestial à procura da verdade, se organiza em planos culturais, comporta desdobramentos e refrações, sendo o resultado, como quer Lacan, de uma coleção desordenada de identificações, cuja ilusória unidade é apenas uma projeção do imaginário. Se o real externo é, portanto, múltiplo (a cultura), também o ego que a vive e percebe o é, adensando essas conexões entre o dentro e o fora.
É nessa acepção que a reprodutibilidade cultural – instância pioneiramente desbastada por Benjamin no início da crise da modernidade – volta a cintilar no horizonte pós-moderno, agora em seu perfil enquanto performatividade; uma vez que não mais estamos lidando com um original e uma cópia, mas num mundo onde tudo é cópia ou, melhor dizendo, nada é original: tudo é intertexto. Ou, dito de outro modo, onde tudo replica, tudo se reproduz, tudo se torna signo de signo, confundindo a origem e mesclando as derivações, a exigir novas apreensões para as interfaces entre os fenômenos. O dinheiro, por exemplo, sustentáculo do sistema de produção, está cada dia menos presente, substituído pelos contracheques e cartões de plástico, aplicações financeiras e letras de câmbio, tornando sua existência apenas virtual. Migrando da era mecânica e analógica, o capital tornou-se, ao longo do século XX, informatizado e digital. Na mesma medida, transformações corporais rapidamente tornaram-se plausíveis podendo o negro cantor adolescente Michel Jackson passar, em dez anos, à condição de pop star adulto branco, empregando recursos de alta tecnologia que refizeram seu corpo, criando uma virtualidade biológica e existencial.

Os gêneros e a sexualidade constituem-se, nesse sentido, em outros exemplos diariamente presentes na mídia.
Muitos artistas ligados à body art se cansaram de demonstrá-lo. No Brasil, o espetáculo Borboletas de Sol de Asas Magoadas (2006) enfoca a vida do travesti Beth. Em sua primeira parte, o espectador é introduzido naquele ambiente um pouco nebuloso e apenas inferido no qual um rapaz se transforma em moça, empregando, para tanto, inúmeros artifícios, seja para disfarçar seus traços mais evidentemente masculinos, seja para realçar aqueles mais próximos dos femininos. Ficamos sabendo, então, que tudo é truque. Que ele ficou o dia inteiro com as mãos para cima para evitar o inchaço das veias das mãos; que usou tantos e tantos cremes para dar volume aos cabelos, caprichosamente ensaiados para, num rodopiar de cabeça, voarem luminosos; dos segredos para disfarçar a barba e realçar o carão, das dificuldades para comprar sapatos de salto com numeração grande etc. etc. Uma verdadeira aula sobre a produção social da feminilidade – ao menos como ele/ela a vê, a vive, a deseja ou pensa que também os outros acreditam ser um padrão feminino de apresentação. Estamos, assim, diante do fake mais descarado.
O mais instigante é que o espetáculo foi criado e é interpretado pela atriz Evelyn Ligoki, uma gaúcha longelínea e desenvolta que, por força do papel, se desdobra sobre si várias vezes, em agudo exercício performativo. Mulher, ela representa um homem que quer parecer (ou ser) uma mulher; ocasião para que todos seus gestos, atitudes, posturas e inflexões vocais passem por rigorosos exercícios de readequação e replicação, com o objetivo de criar um outro ser, uma mulher superlativa, um ápice de feminilidade impostada. Seu trabalho artístico é tão minucioso, adequado e mimético que mesmo espectadores experimentados ficam em dúvida quanto a estar diante de uma atriz ou um ator, instância fundamental para criar a almejada ambigüidade e atingir a sensibilidade da platéia.
Aberto aos incidentes do dia, aos acontecimentos da rua, às características da platéia de cada sessão, Borboletas é uma performance que alcança todos os estratos da performatividade: a construção de um ser mediante a reprodução de pedaços de ações ou comportamentos, como antes referido, ensaiados e manejados, nesse caso, com finalidade artística, mas que são os mesmos que, no cotidiano, outros seres humanos empregam para se apresentar socialmente através de pautas comportamentais.

Prevalecer, sobreviver, superar


No núcleo do conceito de performatividade está a acepção de virtual (ou, como querem alguns, de simulação). Ela absorve tudo o que está na circunvizinhança de símil, como se, em lugar de, experimento, tentativa, ensaio, fingimento ou disfarce, quando tais termos designam ou referem operações ligadas à concepção/execução de um ato ou performance. Tais ações podem preceder ou serem simultâneas ao próprio agir, com ele guardando relações íntimas e indissociáveis. Onde a ênfase incide, em todos esses casos, sobre o modo como são realizadas as ações.


Estamos vivendo a era dos reality shows, quando a TV inunda o mundo com imagens pseudo-reais, programas que imitam ou simulam a própria vida, avizinhados na zona limítrofe entre o ser e o parecer. Programas jornalísticos são cuidadosamente urdidos com reportagens que, mesmo baseadas em fatos reais ou imagens autênticas de acontecimentos, sofrem um tratamento dramatúrgico antes de irem ao ar. Edita-se o escandaloso, o chocante, a violência, o horror, o indecente, o abusivo, o transgressivo, apresentando-se tais materiais sob formatos abafados e pasteurizados, que evitem causar pânico, repulsa, recusa ou infundir reações adversas sobre os telespectadores. Trata-se da lógica do melodrama: o mundo é violento, sanguinário, horripilante, mas também terno, acolhedor, aprazível. A cada imagem de guerra deve corresponder outra de campos floridos; a cada ato de violência, outro de generosidade; para um assassinato, a notícia do nascimento de trigêmeos, e assim fica controlada a angústia e zerada a conta entre amor e ódio, vilões e virtuosos que – a tolerância, afinal, é uma dádiva nos corações bem-aventurados – constituem a dupla face desse mundo.
Programas como Lost, Survivals, The Truman Show, entre outros, foram concebidos exatamente nessa zona fronteiriça entre o real e o aparente, onde o desafio – e há algo mais perturbador e instigante para um jovem que a emulação? – é o propulsor mais eloqüente, capaz de galvanizar desejos e expectativas, projetos e identificações, não apenas entre os espectadores, mas também entre os participantes, pessoas comuns que se submetem a disputar algum tipo de prêmio. No período da Depressão e do New Deal, dada a escassez de empregos, tornou-se moda a criação de concursos de resistência: Carlson McCullers retratou em They shoot horses, don’t they? uma maratona de dança na qual o casal vencedor seria aquele que resistisse ainda se movendo por mais tempo. A fórmula, típica das sociedades movidas pela concorrência e que estimulam a disputa como princípio de sobrevivência, pegou. Big Brother Brasil, O Aprendiz ou Jogo Duro são variações locais do lema “prevalecer, sobreviver, superar”.
Se os limites entre o real e o ficcional estão borrados na TV, igualmente o estão na vida, digamos, cotidiana. A virtualidade impera sob vários formatos: quando uma superpotência testa um míssil, quando um cientista recria em laboratório as condições mesmas do meio biológico para experimentos, quando utilizamos cartões de crédito. Dolls, essas garotas que se vestem de boneca e levam a passear seus modelitos, infestam os clubes noturnos das grandes cidades; ao lado de drag queens, largados, tattooeds, bad boys, rappers e junkies que, cada qual no seu figurino, compõe tribos e erigem espaços para viverem suas fantasias, excentricidades e particularidades que – mesmo vividas aos milhões – infundem a ilusão de autenticidade, passam como algo original.
“O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica”, adverte Linda HUTCHEON (1991: 15) em relação a esse contexto no qual estamos nos movendo. Tais “contradições da auto-reflexividade” constituem um outro modo de falar a performatividade; através daquela inesgotável rede intertextual que percorre a cultura em todos seus formatos: a paródia, a citação, o metadiscurso, a subjetivação do paradigma, o uso da lógica paradoxal, as metonímias, as metáforas, os anacolutos, todas essas formas problemáticas (porque nunca isentas ou indivisas) com que a humanidade se auto-representa.
Existem artistas, contudo, que não gostam de ser tomados como humanos ou comuns mortais, pois almejam algum tipo de diferença essencial e, pelo menos desde meados dos anos de 1960, alimentam um declarado ódio ao virtual, ao dramático, à teatralidade que insiste em escamotear-se e imiscuir-se nas mais remotas representações da cultura. O crítico Michael FRIED (1968), em seu célebre Art and objecthood, ajudou a disseminar essa atitude ao escrever: “o sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, começa crescentemente a depender de sua capacidade de negar o teatro”, abrindo a série de outras negativas urdidas na mesma direção. Cabe, então, perguntar: onde está essa intangível objetividade da arte, alheia e superior ao mundo, que se pretende afastada da teatralidade? Não, certamente, no percurso da action painting, da body art, da performance art, da live art, da povera, da environmental, do brutalismo que, em modo crescente, voltaram-se para o teatral e com ele efetuaram conluios e permutas, exatamente derrubando fronteiras, turvando limites, espetacularizando seus produtos e ações. A resposta estaria na minimal? Naquela busca de simplicidade, despojamento e magreza puritana de formas e linhas que marcam os objetos de Judd, Stella ou Morris?
É preciso ficar claro que a teatralidade não está na coisa, mas no olhar do espectador; ela é um produto mental propiciado pelas percepções e, para emergir, não depende de um palco, atores ou cenografia, mas tão somente de uma operação de linguagem intermediando um sujeito e um objeto, para ficarmos na distinção clássica e que, não fortuitamente, remete também à metáfora objetual do próprio espetáculo minimal: algo a ser visto, alguém para ver.
Teatralidade e performatividade são irmãs siamesas, nascidas do mesmo influxo fenomenológico que fundamenta a mais elementar experiência de um sujeito: olhar. Está na base de todos os nascimentos, próprios ou figurados, subjacentes à expressão “dar à luz”. Essa base antropológica que infunde uma instalação no mundo faz decantar um imaginário, fundeia uma pessoa – cindida, dialógica, pulsional – e, por isso mesmo, dramática, vetorizada por tensões diversas e antagônicas, por vezes conflitivas outras ambivalentes, mas sempre disjuntivas, o eu e o Outro. Razão pela qual a objetividade, aquela quimera positivista referida por Mr. Fried, diz respeito apenas a uma parte do todo, talvez a menos significativa, quando se trata do campo artístico, da vida dos artistas, da inserção da arte na discussão cultural.
Como destaca SCHECHNER (2007: 26), “tudo pode ser estudado ‘como’ física, química, direito, medicina – ou qualquer outra disciplina. Porque o que se afirma com o ‘como’ é que o objeto de estudo será considerado ‘da perspectiva de, ou em termos de uma disciplina específica’.[...] Há tantas espécies de ‘como’ quanto os campos de estudo”, o que nos remete novamente à viseira de Mr. Fried, ao propor verificar o mundo apenas da perspectiva das artes visuais, esquecendo-se que ela depende dos artistas e estes habitam uma dada sociedade culturalmente organizada. Como proposta interdisciplinar, os estudos da performance almejam ultrapassar tais dicotomias de enfoque.

O teatro

Dado o caráter dramático, representacional e inteiramente performático do teatro, como singularizar sua performatividade? Convém lembrar que estamos diante de um substantivo abstrato derivado de adjetivo, ênfase que, tal como sucede com teatralidade, indica uma torção operada sobre o substantivo, logo um modo ou maneira de se apresentar. Algo que pode ser expresso como fazer o que se faz; ou seja, enquanto faz o indivíduo não perde a consciência de que está fazendo, podendo mesmo, sob certas circunstâncias, enfatiza-lo ou dar-lhe destaque. Nesse sentido largo, todo teatro metateatral pode ser tomado, pela sua própria constituição, como articulado com performatividade; uma vez que mobiliza recursos de sua própria narratividade enquanto discurso. Isso pode ocorrer quer no plano do texto (as falas, as cenas, a cenografia ou outros elementos se apresentam como êmulos do palco ou da atividade cênica) quanto do espetáculo (como na commedia dell’arte, na ópera-balé, na mágica, na feérie, nas mascaradas etc., espécimes marcados por acentuado teatralismo).
Hamlet fornece um proto-exemplo: os dois rústicos encarregados de abrirem a cova para o corpo de Ofélia discutem entre si se ela deveria ou não ser enterrada em cemitério cristão, uma vez que havia cometido suicídio. Um deles retruca que um ato “has three branches; it is, to act, to do and to perform: argal, she drowned herself wittingly” (ato V, 1º).
Mais particularmente, a performatividade é observada no trabalho do ator, dissolvida na enormidade de recursos que pode ele dispor para tornar-se virtualmente outro: na caracterização (perucas, corcundas, barrigas, narizes, postiços em geral), na composição (posturas, gestos, expressões fisionômicas, mímica), na tipificação (conhecida, em francês, como emploi, todo o conjunto de recursos empregados para parecer um tipo já conhecido pela platéia, quer do ponto de vista físico quer psicológico e que almeja uma rápida identificação). São esses seus recursos clássicos. Em consonância com novos procedimentos, poderemos ter o distanciamento (brechtiano ou não), a narratividade (ênfase no aspecto fabular), a ilustração corporal (gestos de ênfase) ou o chamado teatro físico, a mimese corporal (adoção de gestos, posturas e mímica do modelo seguido), entre outros.
Determinadas modalidades cênicas – o teatro de rua, as formas animadas, o novo circo, a dança-teatro, o teatro de bonecos – costumam dar relevância a seus elementos de performatividade, como modo de sublinhar seus materiais expressivos, almejando assim mais ampla comunicação ou lutarem contra os ruídos que nelas intervêm.
Há algumas décadas o teatro brasileiro registra alguns espetáculos muito particulares, quase sempre nascidos da iniciativa popular e que se tornaram atrações anuais nas cidades onde ocorrem, tais como a Fundação de São Vicente, SP (montagem na praia que congrega centenas de moradores da cidade, ultimamente contando com protagonistas convidados), a Tomada de Laguna, um episódio da Revolução Farroupilha (na cidade de Laguna, SC) ou a Paixão de Cristo (em Nova Jerusalém, PE), esta repetida, em versão menor, em inúmeras cidades do país. São eles exemplos de performatividade superlativa, uma vez que envolvem não-atores em desempenhos rituais, irmanados num evento prenhe de significados e ressonâncias para as comunidades. O Boi de Parintins, o Carnaval e inúmeras outras manifestações cênicas espalhadas pelo país apenas confirmam essa arraigada necessidade de representação que encoraja as populações.
Por outro lado, temos os espetáculos militantes, igualmente produtos da mobilização popular, organizados como ritos que visam algum tipo de conscientização, arregimentação ou outros em torno de causas sociais. Nesse viés, temos os comícios e atos públicos periódicos, ao lado de manifestações estáveis como as Paradas Gay ou as Místicas do Movimento dos Sem Terra, que visam enraizar sentidos e sentimentos entre os correligionários.
Mas como identificar os traços performativos sublinhando a linguagem teatral de uma perspectiva mais restritamente estética? Para concordar com Josette Feral (2008: 197-210), salientar, de início, aquilo que ela contém enquanto ação mais que representação, no sentido mimético que mobiliza, e nisso também concordando com Schechner, que enfatiza o aspecto ligado ao “fazer” ali implicado. Alguns espetáculos brasileiros recentes permitem essa verificação, como Café Com Queijo (1999), criado pelo LUME, onde os intérpretes cantam, dançam e contam histórias, sem que as mesmas possuam relação entre si, mas fulgurem num fundo comum de crenças, valores e sentidos. Mais que personagens e situações, a realização destaca seus intérpretes, o modo como particularizam e executam as ações dadas à vista. Nessa mesma perspectiva estão muitas outras produções, tais como Bugiaria, de Moacir Chaves (1999), O Homem que virou disco voador, criado por Aderbal Freire Filho (2003), Pessoas Invisíveis, da Armazém (2002), Um Homem é Um Homem, do Galpão (2006), Agreste, pela Cia. Razões Inversas (2004), Ensaio Hamlet, da Cia. dos Atores (2006), A Pedra do Reino, pelo CPT/Antunes Filho (2006), Vida, o filme, com Os Dezequilibrados (2005), entre múltiplos outros exemplares, assim como a totalidade da produção do Oficina ou Oi Nóis Aqui Traveiz que, díspares quanto aos propósitos estéticos, possuem em comum as refrações encetadas entre o que é dito e o modo como isso é levado à cena.


 

Teatro Oficina, Os Sertões

Há, em todos esses casos, uma buscada desnaturalização da representação. Gaivota, tema para um conto curto (2007) levou ainda mais longe as dissociações já presentes em Ensaio Hamlet, duas encenações de Henrique Diaz para a Cia dos Atores, grupo carioca marcado pela pesquisa formal. Baseado em Tchecov, espetáculo à deriva, à beira do precipício ficcional, a questão do fracasso da peça escrita pela personagem Treplev foi tomada como leitmotiv para a concepção de Diaz que, desse modo, a amplificou, tornando real e presente para os intérpretes aquela crise antes ficcional. Desse jogo de possíveis, dessas ranhuras entre o real e o ficcional, a narrativa escoa, estreitando enormemente o intervalo entre atores e personagens. O símbolo da gaivota, tanto como um sonho de liberdade para o artista, quanto como o desejo de Nina de conquistar outras alturas, foi dissolvido entre todas as figuras, tornando-as ambivalentes entre o que fazem em cena e o que gostariam de estar fazendo, intensificando os gestos, declarações, movimentos, marcados todos por essas tensões de enunciação.
Em seu artigo para o programa, Diaz faz alusão ao tempo. Sublinha-o como motor guiando a pesquisa formal, ancorado entre aquele do início do século XX e este do XXI, uma ponte que cada intérprete procurou dentro de si, articulando seu desempenho para fazer vibrar essa tensão, como se percorressem uma fita de Moebius: um vai e vem contínuo, uma recorrente angústia frente à duração, pontilhada, aqui e ali, de sorrisos melancólicos e frases de algibeira que tentam saltar fora desse escorregar sem fim.
Numa nova interpretação para Toda Nudez Será Castigada (2005), a Armazém insistiu nas características obsessivas que pontuam a obra, concentrando nas reverberações imaginárias de Herculano, o viúvo que se apaixona pela prostituta Geni, o vértice de sua narrativa. Tomando-a como um movimento de introjeção (o encenador Paulo de Moraes a situou na cabeça do protagonista), a trama procura colocar em cena aquilo que a imaginação da personagem masculina central se dá em espetáculo: saltos bruscos de cenas e situações, roupas muito maiores que o normal, gente girando nas paredes, camas, cadeiras e utensílios em instável dança pelo espaço, faces e expressões marcadas por acentos expressionistas.
Mais que vivenciarem as criaturas, os intérpretes as mostram, as exibem como exemplares de uma dada configuração mental e social, exacerbada por instâncias afetivas turbulentas e entrelaçada através de diagramas conflitivos. As luzes, a cenografia, os figurinos, tudo ajuda a destacar o buscado descolamento entre intenção e gesto, empurrando a percepção do espectador para o abismo especular, a crise entre o que é e o que poderia ser.
Rainha[(s)] (2008), espetáculo de Cibele Forjaz com Georgette Fadel e Isabel Teixeira, constitui outra demonstração de performatividade exacerbada. O motivo central é a disputa entre as rainhas Elizabeth I e Mary Stuart, tendo a clássica cena escrita por Schiller como alavanca. Mas o que temos em cena é o enfrentamento efetivo das duas atrizes, ora no plano real, ora no fictício, ora no presente, ora no passado, alinhavando os opostos pontos de vista que manifestam frente ao material dramático privilegiado: a disputa pelo coração da cena. Metáfora e realidade, tal coração é também símbolo e emblema, a galvanizar e dar consistência aos enfrentamentos. Num momento de ápice, esse coração jorra sangue, fazendo com que a metáfora deslize do plano simbólico para o concreto, oferecendo-se enquanto espetáculo. Noutro momento o público é solicitado a votar o destino de Mary. A montagem absorve esse movimento performático e o administra, mais uma vez dando à vista sua pronunciada performatividade, agora como demonstração de um rito processual que culmina com a decapitação de Mary.
Nas páginas finais de O teatro pós-dramático Hans-Ties LEHMANN (2007: 401) se interroga sobre o futuro do teatro, argüindo sobre os avatares da representatibilidade. Elucida, então, que o que está em jogo é, ainda, o destino: “se o teatro dramático seguiu o padrão do destino antigo nos moldes de uma narração, do desenrolar de uma fábula, no teatro pós-dramático chega-se a uma articulação que não se baseia na trama, mas na manifestação do corpo: o destino fala aqui a partir dos gestos, não a partir do mythos.” A performatividade está nesse novo modo de fazer falar o destino.

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O GOSTO DA PRÓPRIA CARNE



Edélcio Mostaço

Pensar sobre o legado de Oswald de Andrade quase um século depois de seu surgimento na cultura brasileira é bastante árduo, uma vez que nos encontramos, pelo menos, na terceira geração de críticos que se ocuparam de sua recepção. Mas não vou me reportar a essa dimensão – sempre polêmica -, mas convém lembrar que as diferentes leituras que incidem sobre nosso autor evidenciam, muito mais, as circunstâncias de época em que vieram à luz, além de remeterem às metodologias e pressupostos ideológicos que animam tais leitores.
Para me manter em sintonia com minha colega de mesa, vou invocar as proposições de J. Tynianov em relação à evolução literária. Segundo o formalista russo, o estudo da literatura deve abandonar os laivos psicologizantes, historicistas e “do meio” para considerar outras componentes do sistema. Tomar os movimentos estéticos como séries, alinhamentos que, para serem convenientemente compreendidos, devem se reportar à vida social de onde emergiram. Nessa acepção, o “fato literário” é, para Tynianov, um fenômeno lingüístico e o historiador da literatura deve estar atento, portanto, para sua característica de oralidade. Explicando melhor, evidenciar sua natureza enquanto fala, enquanto natureza de discurso e função no meio social no qual se originou e pretende atingir.
ara exemplificar, um mesmo vocábulo pode surgir em dois movimentos sucessivos ou opostos entre si, em cada um ocupando função diversa. Sua função é que vai dizer, portanto, qual o significado que adquire num e noutro momento. A palavra “índio”, por exemplo, que no romantismo esteve associada à descoberta da terra e seus habitantes, uma invocação lírica dos fundadores surge, no modernismo, cercada de tom polêmico e irônico, senão excludente, cáustico e derrisório.
Outra série de importância na verificação dos movimentos está associada à dominância; quais elementos são dominantes num e não em outro, constituindo sua expressão preferencial. A intencionalidade, outro fator relevante, igualmente impõe sua circunscrição; e, para o formalista russo, deveria ser ela buscada não na subjetividade dos autores mas, com melhores resultados, junto às suas funções construtivas, formais, estruturais.
Tais elementos são suficientes para situar nosso roteiro. Quando nos debruçamos sobre o período anterior ao modernismo não é difícil identificar nos anos de 1888 e 1889 duas datas simbólicas cheias de implicações, a primeira varrendo a escravatura dentre nós e a segunda impondo a república, triunfos da mentalidade positivista que marca o período. Se o realismo e o naturalismo ainda representavam ecos da consciência monárquica, comprometida com o conservadorismo e enredada numa visão ética e moral vitorianas, o parnasianismo, expressão poética que lhe é consentânea, ilustra com perfeição seu perfil preciosista, solipsista e ebúrneo, ultima floração dos oitocentos entre nós.
Será o simbolismo o movimento que, nas primeiras décadas do século XX, irá preparar o terreno para a eclosão moderna, embora, sua divulgação, tenha encontrado fortes resistências de gosto, excessivamente marcado pelas fórmulas parnasianas e pelo viés místico e neo-conservador em que o positivismo se enredou.
Mas aqueles primeiros anos do século apresentam inúmeros desvios, autores que, à deriva, são identificados como pré-modernistas. Na prosa, é o caso de Euclides da Cunha, Lima Barreto, João do Rio, Graça Aranha, Adelino Magalhães, Raul Pompéia. Na poesia, temos a primeira produção daqueles que, em seguida, identificar-se-ão com as linhas de força modernas, notadamente Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Tasso da Silveira, Murilo Araújo, Mário de Andrade.
Mas nosso autor é Oswald de Andrade; e dentre sua produção vou destacar o teatro e seus escritos dedicados à antropofagia. Após seu primeiro retorno da Europa, em 1912, então com 22 anos, Oswald viveu uma crise mística em função do falecimento da mãe, fixada em diversas cartas que trocou com Teodolindo Castiglione. Temas cristãos, do dogma teocrático e circunvoluções da moralidade que cercam o catolicismo são ali deslindados. Nessa época Oswald, junto a um grupo de autores, estava envolvido com o jornalzinho O Pirralho, um hebdomandário satírico e debochado que comentava artes e espetáculos. É o momento em que esboça um drama em três atos, deixado inconcluso, denominado A Recusa, datado de 1913. Entre outros temas – tais como as relações entre homem e mulher e a decadência dos costumes da época – os contrapontos existentes entre a vida vivida em Paris e no Brasil ganham destaque, tornando a obra inserida naquele típico contexto de discussão então vigente entre os valores cultivados de um e outro lado do Atlântico.
Essa crise mística se dissipa logo a seguir, e Oswald, com 23 anos, torna-se crítico teatral do jornal Correio Popular, o que lhe faculta amplo contato com a produção dramática do período, além de assistir muitos espetáculos e flertar com atrizes e coristas. Entre outras grandes personalidades que conheceu ou privou ao longo desses anos de juventude estão Sarah Bernhardt e Isadora Duncan. Em 1916, em co-autoria com Guilherme de Almeida, escreve dois textos dramáticos em francês e jamais vertidos em português: Leur Âme e Mon Coeur Balance. Possuem muitas características que os projetam como simbolistas, tendo ambos como tema a volúvel natureza dos corações femininos. Leur Âme foi dedicado à Wanda, uma bailarina adolescente por quem nosso autor encontrava-se perdidamente apaixonado, mesmo casado com a francesa Kamiá. Um ato da peça foi lido no Teatro Municipal de São Paulo por Lugné-Poe e Suzanne Desprès, segundo ele “com a mais justa indiferença do público e da crítica”.
Na seqüência, em 1917, Oswald escreve novo texto dramático, denominado O filho do sonho, muito provavelmente inspirado pela greve operária ocorrida naquele ano, uma vez que aqui a discussão entre as personagens abandona os eflúvios do coração e enfoca problemas sociais e distintas visões de mundo, como a que opõe Vanni e Marcos, o primeiro próximo das posturas comunistas e em crise religiosa (o que parece evocar o passado do próprio Oswald) e o segundo, articulando nítidas inclinações anarquistas. Antônio e Rodrigo, outra dupla e outra classe social, discutem as vantagens e desvantagens de se viver no Brasil ou na Europa, o que parece retomar o assunto já explorado em seu primeiro texto. O filho do sonho restou inconcluso, teve as páginas finais do manuscrito arrancadas, de modo a tornar impossível saber qual seu final.
Essa primeira fase de Oswald dedicada ao teatro foi constituída, como se nota, com algumas incursões pela dramaturgia, assim como, igualmente, pela militância crítica e teórica; ao lado de contatos com grandes renovadores da cena internacional, como Isadora Duncan e Lugné-Poe, este nada menos que o grande animador do Théàtre de l’Ouevre, em Paris, encenador do genial poeta adolescente autor de Ubu Rei e que havia convulsionado a ribalta francesa, ambos reconhecidos, desde então, como baluartes da mais ofensiva vanguarda. Personalidade inquieta, em sintonia com seu tempo e perspicaz observador das ações humanas que merecessem figurar num palco, Oswald já evidencia, mesmo nessa produção irregular e imatura, duas grandes virtudes para a cena: a economia nos diálogos (em aberta oposição ao padrão simbolista então dominante, de tomar os enredos como oportunidades para longas tiradas pseudo-filosóficas ou solilóquios melodramáticos que com muito esforço alcançavam algum brilho); as cenas curtas, nucleadas em torno do essencial para configurar a ação.
Resta mencionar, ainda nessa fase, seu apreço por Piolin, o palhaço de circo que, através de suas pantomimas, alegrava as tardes de domingo nos pavilhões ou como convidado para os salões da alta burguesia. 1917 marca, como se sabe, o início da arrancada modernista, através da exposição de Anita Malfatti e da série de artigos pela imprensa que enaltecem o “espírito moderno” em detrimento do passadismo, tornando nosso autor um dos principais articuladores da Semana de 22, ponta de lança de um conjunto de mudanças que culmina em 1924.
Parecem concordes todos os analistas do modernismo em dividi-lo em duas fases: entre 1917 e 1924, estágio de afirmação e consolidação das conquistas organizadas em torno dos novos procedimentos; e entre 1924 e 1930, ápice das expressividades contraditórias que ele albergava e que, cada qual em seus parâmetros, produziu os melhores frutos.
Oswald, nesse caso, é destaque nos dois momentos: em 1924 lança o movimento Pau-Brasil, bússola das melhores conquistas adquiridas com o futurismo, o expressionismo e o cubismo; e, em 1928, dá a conhecer o Manifesto Antropófago, a mais abrangente cartografia das relações sócio-culturais do país, a mais radical postura moderna frente à cultura brasileira até então encetada.
Sobre o primeiro momento ele ponderou: “se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo. O primitivismo nativo era o nosso único achado de 22, o que acoroçoava então entre nós” [...]. “A Antropofagia foi, na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro”. Esse primitivismo, já verificado como a emergência do pensamento selvagem, mítico, base do inconsciente coletivo que levava à idéia de assimilação, foi posteriormente aprofundado no período da antropofagia, em busca de um renovado tribalismo para a vida coletiva, quando os mecanismos sociais repressivos devem deixar de vigorar, em prol da liberação das potências do instinto e do domínio, canalizando-as para a atividade criadora, simultaneamente artística e erótica.
As questões evocadas por Tynianov relativas ao uso da língua ganham absoluto destaque nesse contexto. Em Pau Brasil pode-se ler: “o Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. [...] Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.[...] Eruditamos tudo. [...] Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. [...] O trabalho contra o detalhe naturalista - pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. [...] Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.”
Tais pressupostos, no Manifesto Antropófago, tornam-se ainda mais radicais: “Tupi or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. [...] Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-mundi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. [...] Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. [...] A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas.”
Nesse novo estilo de escrita é privilegiada a síntese, o acabamento técnico, a invenção e a surpresa, o abandono do lado doutor e as citações, a substituição do tratado pelo roteiro, a corrupção da gramática e, somando tudo, a percepção da necessidade de novas experiências manejadas como projetos concretistas. Tal foi, de fato, o percurso.
Quanto ao teatro, Oswald já tinha apontado no Manifesto da Poesia Pau Brasil sua reprovação em relação ao teatro de tese e as costumeiras disputas entre “morais e imorais”, explícita recusa aos modelos realistas e naturalistas que ainda infestavam nossos palcos naquela década de 1920; motivo, muito conhecido, da ausência de artistas ligados à cena na histórica Semana. Salvo Piolin, decantado intérprete quer por Oswald quer por Alcântara Machado, nenhum outro homem ou mulher dos palcos teve sua atenção desperta para as novidades trazidas pelo modernismo; à exceção de Álvaro e Eugênia Moreira que, no Rio, comandavam a sazonal experiência do Teatro de Brinquedo.




Ao que tudo indica, O Rei da Vela foi escrito para ser montado, em 1933, no Teatro da Experiência, fundado no ano anterior em São Paulo por Flávio de Carvalho. A peça chegou a ser lida naquela improvisada garagem do andar térreo do Clube dos Artistas Modernos que conhecera, meses antes, a estréia de Bailado do Deus Morto, quase um happening idealizado e conduzido pelo seu mentor. Mas a polícia de Getúlio Vargas estava vigilante e o empreendimento deu com os burros n’água, fechado logo a seguir. De modo que o texto de Oswald permaneceu inédito, até a histórica encenação de José Celso Martinez Corrêa para o Teatro Oficina, em 1967.
Nosso autor tinha, muito recentemente, se convertido ao comunismo. Após longa convivência com Tarsila do Amaral, que lhe facultou em Paris relacionamentos importantes com expressivos artistas da vanguarda internacional, encontra-se agora ligado a Patrícia Galvão, a Pagu, uma jovem explosiva que o incentiva às grandes ações e à fundação do jornal O Homem do Povo. A peça O Rei da Vela é um grande painel sobre o funcionamento da sociedade do dinheiro e as relações econômicas na era do capitalismo colonialista. No texto, a monárquica família do cel. Belarmino está arrasada, vítima da crise do café de 1929, e o aburguesado usurário Abelardo I está em busca de prestígio, razão pela qual a aproximação entre eles é um conluio muito apropriado, capaz de resolver interesses mútuos. “Nosso casamento é um negócio”, alerta Heloisa de Lesbos ao entrar em cena, denunciando sem pudor o caráter dessas relações sócio-econômicas.
Não há tese a ser demonstrada – mas apenas a exposição de um grande painel sobre o funcionamento do sistema da casa; não há luta entre “morais e imorais” - mas apenas ações ditadas pelos costumes ancestrais (caso da família) e os mafiosos métodos de gerência no escritório de usura (caso de Abelardo I), com uma surpresa guardada para o final: após ser roubado e conduzido à bancarrota e ao suicídio por seu estafeta Abelardo II, um socialista que renegou sua classe, o novo casamento é abençoado por Mr. Jones, o americano que está inspecionando as plantations ao sul do Equador, com o alvissareiro beneplácito de “good business”. Na vigência do capital, como aqui demonstrado, nada muda e apenas o dinheiro troca de mãos, salvaguardando o jogo do “rei morto, rei posto”.
É nesse sentido que a engenharia da cena é projetada, através de sínteses eficazes obtidas à custa do acabamento dramático técnico, um dado de invenção e surpresa que formaliza, junto ao espectador, a multiplicidade cubista dos muitos planos aqui enovelados e oferecidos como experiência concreta de uma dimensão sócio-cultural. Não há, sem dúvida, melhor retrato dos jogos de poder vigentes na Velha República que essa criação dramática de Oswald.
No ano seguinte, em 1934, surge O Homem e o Cavalo, uma nova criação que radicaliza ainda mais o painel sobre a realidade brasileira de então – desta vez em perspectiva internacional e reportando-se à obra de Maiakóvski (existem diversas correlações possíveis com o Mistério Bufo). Ao contrário de O Rei da Vela, estruturada em três atos e onde Oswald efetivou, em cada um, uma paródia de estilos arcaicos da cena, aqui observamos uma construção épica, em nove quadros, mais ou menos independentes entre si, unificados pelo tema comum: a marcha para o socialismo. Mais clara demonstração da militância política de nosso autor, nesse período formalmente adepto do Partido Comunista, O Homem e o Cavalo apresenta dezenas de personagens que se impostam à passagem da estratosnave do professor Ícar, realizando um périplo pela Terra.
Após sair do Céu, passar pela Europa e Brasil, a estratosnave aporta no país do socialismo, onde a Voz de Stálin trombeteia as conquistas da Revolução. Logo a seguir segue-se o julgamento de Cristo, talvez o quadro mais blasfemo de toda a peça, onde Verônica exibe Adolf Hitler crucificado numa suástica e Cristo é declarado “o último Deus ariano”. No último quadro, denominado O estratosporto, a nave parte para diversos planetas do sistema solar, numa premonição da futura corrida espacial que se desenhou depois dos anos 1960.
Uma montagem contemporânea do texto pode ainda resultar impactante, não mais pelos conteúdos ideológicos e irreverências de toda sorte que pululam no texto do começo ao fim, mas pelo seu aspecto de teatralidade, de inventividade cênica, seus recursos apropriados para uma encenação em estádio – coisa que, naquele momento parecia impossível mas que, atualmente, está nos planos utópicos do Teatro Oficina.
Segundo recordações de Oswald de Andrade Filho, a peça chegou a ser ensaiada, ou ao menos algumas leituras para tanto foram efetivadas, tendo Oswald e Flávio de Carvalho à frente; mas a produção não se concretizou. Em 1972 o encenador franco-argentino Victor Garcia, com produção de Ruth Escobar, chegou a cogitar sua encenação, mas os cortes promovidos pela Censura inviabilizaram a iniciativa; de modo que, até o momento, o texto permanece praticamente inédito, salvo uma leitura dramatizada de grande impacto promovida por José Celso Martinez Corrêa em São Paulo em 1986.
A última investida de Oswald de Andrade sobre os palcos deu-se com A Morta, em 1937, num momento em que está casado com Julieta Bárbara, musa lírica de sua tessitura. Embora ainda formalmente comunista, mas já seriamente abalado pelo fracasso da Intentona Comunista de 1935 e pelo terror stalinista que varria a União Soviética, nosso poeta idealizou nesse texto um confronto com a arte e sua natureza, as circunstâncias nas quais cultura e arte convivem na sociedade capitalista e pensou, sobretudo, nas fontes de inspiração da poesia. Beatriz, a eterna musa dos poetas (uma tradição iniciada com Dante), aqui surge como ela mesma e como A Outra de Beatriz, duplo que a acompanha como sombra. Ela e O Poeta cruzam três diferentes territórios: o país do indivíduo, o país da gramática e o país da anestesia – arquétipos de situações que parecem minar a criação, estreitar a criatividade, subjugar todas as revoltas, o que motiva que O Poeta, no final, faça tudo arder em chamas: “é o drama do poeta, do coordenador de toda ação humana, a quem a hostilidade de um século reacionário afastou pouco a pouco da linguagem útil e corrente”, declara Oswald no prefácio da peça.
Razão pela qual ele assume uma nova verdade, o compromisso de não abandonar as lutas, “os arrebóis do futuro”. Formulando um espaço que une a cena e a platéia, Oswald inicia o texto com o compromisso do Hierofante, uma espécie de prólogo, onde o mesmo se declara ser a moral da peça, posta antes do final “a fim de que a polícia garanta o espetáculo”.
Vista em conjunto, a obra dramática de Oswald se afigura fora do seu tempo, adiantada demais em relação aos padrões estéticos, técnicos e ideológicos do teatro brasileiro do período. O que, evidentemente, não é um óbice para que sejam apreciados seus valores de referência, suas inovações estruturais e, especialmente, seus procedimentos de construção técnica e artística, muitos anos à frente de Nelson Rodrigues, aquele que nossa crítica mais conservadora premiou com o título de autor moderno. Tais questões de historiografia do teatro brasileiro ainda se encontram num estágio primevo, longe de refletirem as verdadeiras constituintes de nosso passado cênico; cujo melhor exemplo é Qorpo Santo, autor limítrofe que a historiografia ainda mal digeriu e não sabe o que com ele fazer.
Exumando sua função enquanto intelectual engajado, mas também fazendo uma espécie de balanço de uma vida de confrontos, tanto artísticos quanto políticos, Oswald de Andrade irá, daqui para frente, dedicar-se intensivamente ao jornalismo.
Rompe com o Partido Comunista em 1945 e escreve, nos anos vindouros, vários textos relativos à Antropofagia, destacando-se O Modernismo (1949), O Antropófago e a tese de filosofia A Crise da Filosofia Messiânica (1950), além do artigo Um aspecto antropofágico da cultura brasileira — o homem cordial, no qual retoma um tema antes desenvolvido pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Em 1952 escreve uma Introdução à Antropofagia, e dois anos após Do órfico e mais cogitações e O primitivo e a antropofagia, um pouco antes de falecer em 1954.
Essa volta ao tema antropofágico resume, com grande acuidade, a formatação de um círculo de dupla articulação, como a fita de Moebius, ao mesmo tempo artístico e político. Disputando com o movimento Verdamarelo a retomada do índio como matriz da cultura brasileira, as duas correntes, após a Revolução Liberal de 1930, tomam caminhos exatamente opostos: enquanto os antropófagos dirigem-se para a esquerda, os verdamarelos singram para a direita. Reciclada a experiência marxista, Oswald retoma aquele percurso para aprofundar seus sentidos e significados, evidenciando as estratégias então empregadas para repensar o Brasil. O caráter primitivo da alma indígena, o matriarcado, o sentido órfico da existência, a crise da ordem messiânica patriarcal, a recuperação do sentido utópico, seriam as diretrizes da “revolução caraíba”, capaz de nos levar do histórico ao transhistórico, do cronológico ao tempo primevo, da ritualização da violência individual à reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos. Há um sentido proudhoniano nessas considerações, que articulam uma fuga de Deus e do cristianismo como óbices à felicidade, ao mesmo tempo em que vislumbram superar o caráter autoritário do Estado.
Na série de artigos relativos à marcha das Utopias, Oswald examinou diversos movimentos históricos que se abeberaram na fonte cristalina dos sonhos como impulso de criação; para concluir que o ócio, como uma negação do negócio, é o verdadeiro índice ético para essa nova sociedade – numa assaz curiosa antecipação de Herbert Marcuse e Domenico de Masi.
Esse conjunto de escritos evoca idéias de muitos e muitos autores, citados ou glosados, evidenciando que nosso poeta colocou em prática seu ideário comestível, abeberando-se e deglutindo corpos de doutrinas de diversas latitudes e longitudes, verdadeiro festim antropófago no nível intercultural e pós-colonial. Mas experimentou, sobretudo, na própria carne, a voracidade que tal processo pressupõe – afinal, como ele próprio bem sabia, é necessário transformar o tabu em totem.
A aceitação de Oswald longe está de ser tranqüila. Seu amplo projeto antropofágico cultural já recebeu críticas severas, desde Tristão de Athayde, Antônio Candido, Décio de Almeida Prado, Cavalcanti Proença, até as recentes incursões de Roberto Schwarz ; mas também adesões de porte, como as efetivadas por Mário Chamie, Benedito Nunes, Augusto de Campos e sobretudo, Haroldo de Campos, o intérprete maior de seu legado.
Não tenho aqui espaço nem é este o momento de situar os termos das contendas observados nesse amplo debate, que não se restringe apenas às características estéticas do todo cultural como, especialmente, a seu projeto sócio-político de mudanças. O assunto mereceria, por si só, todo um seminário. Mas, para não sairmos daqui de mãos vazias, gostaria de indicar alguns tópicos, colhidos fora da área literária e artística. Num iluminado estudo denominado A Invenção do Cotidiano, o historiador Michel de Certeau desvendou o que chamou de táticas e estratégias empregadas pelas culturas populares para resistir e sobreviver ao massacre das representações imposto pela indústria cultural e demais sistemas coercitivos que sobre elas operam. Suas conclusões nos ajudam a perceber como, através do deslocamento das palavras, reversões de usos e funções dos paradigmas dominantes, reapropriação de provérbios e frases feitas, simulação de aceite e reorientação de gestos impostos, as camadas populares aprenderam, ao longo dos tempos, a conviver com as adversidades. São astúcias milenares, desde sempre incorporadas e praticadas, deglutidas, para ficarmos no vocabulário típico da relação antropofágica.
E o caráter dionisíaco das culturas, a constante erupção do corpo e seus avatares, são privilegiados pelo sociólogo Michel Maffesoli: “estamos, antes, diante de uma potência afirmativa que encontramos, subterraneamente, em todas as estruturações sociais e que, às vezes, se impõe de modo irresistível, como uma imensa onda que não se pode deter. Aqui está um projeto ambicioso: dar conta do ‘dispêndio’ popular. O que era característica da vanguarda, dos artistas, dos gênios solitários e orgulhosos, ramifica-se no conjunto do corpo social. O gozo do presente, o carpe diem, torna-se valor massivo e irrecusável. [...] A luta econômica, a emulação pecuniária, a teatralidade política parecem atestar que nada escapa ao jogo do mundo, que as sociedades são formadas por ele e que leva-lo em conta não é uma posição de esteta, mas o reconhecimento de uma constante que, em diagonal, atravessa todas as realidades humanas. [...] Contraposto ao utilitarismo, o ludismo é o índice mais nítido do querer viver e da perduração da socialidade. [...] Como tenho dito com freqüência, tudo isso é particularmente perceptível no Brasil. E, convém que os intelectuais brasileiros estejam à altura de seu país. Que eles saibam pensar o que é, largamente, vivido”, salienta seu autor no ensaio A sombra de Dioniso.
Enquanto cartografia dessas duas perspectivas, o projeto antropofágico de Oswald de Andrade me parece ser a mais acabada iniciativa intelectual surgida entre nós, não para interpretar o Brasil, mas para reconhecê-lo, instituir sua alteridade, para vivê-lo em plenitude, rente à originalidade que o perpassa em diversos quadrantes.