sexta-feira, 26 de março de 2010

Fenomenologia e estética


CULT - Publicado em 14 de março de 2010

Para Merleau-Ponty, a arte possui um estatuto ontológico privilegiado ao dar acesso a uma percepção primordial do mundo

Cristiano Perius

“Antes de tudo importa que neste instante o poeta não admita nada como (pré-)concebido, que ele não parta de nenhum traço positivo, que a natureza e a arte tais como conhece como lição não lhe falem nada, antes que uma língua esteja lá para ele, isto é, antes do que isto que agora é desconhecido e sem nome no mundo se torne conhecido e nominável por ter sido composto em concordância com a sua Stimmung [disposição]”.


Friedrich Hölderlin

Essa frase de Hölderlin resume, em poucas palavras, o projeto estético merleau-pontyano, mas também implica, ao bom entendedor, duas coisas. Em primeiro lugar, que a arte conta, ao lado do saber positivo, com um estatuto ontológico privilegiado, e, segundo, que não existe na filosofia de Merleau-Ponty um projeto estético senão através de um projeto fenomenológico. A razão está no fato de que Merleau-Ponty não tem uma obra de estética no sentido de uma “teoria do belo” (como na Poética de Aristóteles) mas conceitos filosóficos desde sempre praticados pela arte, em especial o conceito de “expressão”, adequado ao exercício artístico. Se é assim, isto é, se a reflexão estética merleau-pontyana se espraia numa “fenomenologia da percepção”, ou numa “ontologia do sensível”, como os manuais de filosofia ensinam, como podemos trocar em miúdos esses nomes ou essas rubricas? Ora, a fenomenologia tem por objetivo descobrir o mundo antes do saber e do conceito – a partir do “ser bruto”, segundo o jargão merleau-pontyano –, e por isso esse é um processo de “deslumbramento”, segundo o filósofo, pois o poeta procura, mas nem sempre encontra, apoio na linguagem proferida. Razão pela qual Merleau-Ponty define, na famosa introdução ao seu trabalho mais extenso, a Fenomenologia da percepção, que “a melhor fórmula da redução é um espanto [étonnement] diante do mundo”.
Em outras palavras, se a fenomenologia é “o estudo das essências”, segundo a herança de Husserl, em nenhum momento ela se afasta da existência, plano em que as idéias não são “puras”, isto é, regradas do princípio cartesiano (idéias claras e distintas) ou kantiano (formas da intuição e categorias do entendimento). Sabemos que no “mundo vivido” (outra expressão da fenomenologia) as razões estão ocultas, não manifestas, segundo a idéia de uma “filosofia da ambigüidade”, isto é, o instante em que sujeito e o objeto se abraçam (num primeiro momento a partir do “corpo próprio”: nem sujeito, nem objeto; posteriormente relançado pela idéia, “sem nome na História da Filosofia”, de “carne”: raiz ontológica da experiência que duplica, produzindo o duplo, o par, como fenômeno de diferença, tal como o sujeito e o objeto, a matéria e o espírito, a consciência e a coisa etc.). Pois “procurar a essência do mundo não é procurar o que ele é em idéia”, como se ele fosse um objeto para o pensamento, mas a experiência pré-objetiva que, segundo Merleau-Ponty, “eu não domino porque é inesgotável” – mais ou menos como nestes versos de Drummond: “E nada basta / nada é de natureza assim tão casta / que não macule ou perca sua essência / ao contato furioso da existência./ Nem existir é mais que um exercício / de pesquisar de vida um vago indício” (do “Relógio do rosário”). Ora, é exatamente esse contato, ambíguo e indiviso, entre o “corpo” e o “mundo”, que não pode mais ser sublimado, da percepção ao entendimento, como fez a metafísica clássica. No lugar dessa ascese — que Merleau-Ponty chamou de filosofia reflexionante, por sobrevoar o mundo da percepção — está o lema husserliano da “experiência muda, que é preciso conduzir à expressão pura do seu próprio sentido”. Pois se a “verdadeira filosofia é re-aprender a ver o mundo”, deve então “recolocá-lo sob o signo do olhar”, sem “substituir o mundo pela significação do mundo”, segundo o filósofo, na Introdução da Fenomenologia. Isso significa dizer que, como Marcel Proust, em “O tempo redescoberto”, “as idéias formadas pela inteligência pura têm apenas uma verdade lógica”, quando precisamos “reencontrar a verdade de nossa percepção”.
Tudo se passa como se estivéssemos cegos, acostumados ao mundo que nos circunda, enquanto a verdadeira vida está ausente. Mas, se a verdadeira vida nos escapa nas estradas da existência, ela poderá ser reencontrada sob o signo da memória involuntária, e por isso, para Merleau-Ponty, “ninguém foi mais longe que Proust ao fixar as relações entre o visível e o invisível, na descrição de uma idéia que não é o contrário do sensível, mas o seu duplo e profundidade”. O problema da percepção, que depois da obra de 1945 se incorporou ao “logos do mundo estético”, nas filosofias da consciência, foi inteiramente ignorado. E é exatamente a volta ao mundo da percepção que a arte esquematiza e re-coloca, re-aprendendo a ver o mundo. Nela a vida não é representada sob o signo do entendimento, mas de imagens ou metáforas que, mais do que estéticas, ou exatamente por isso, lançam luzes (laterais e sub-reptícias) sobre o mundo – a ponto de Marcel Proust, no final do Em busca do tempo perdido, dizer que “a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida por conseqüência realmente vivida, é a literatura”. Mais ou menos como na canção de Madredeus sobre o rio Tejo: “E a cidade, chamam-lhe Lisboa mas é só o rio que é verdade…” Pois nesse espaço de procura, sugerido desde o título da obra proustiana, esses dois rios – escrever (literatura) e descrever (fenomenologia) – desembocam no mesmo oceano: a existência.
Mas não é só isso que define o acontecimento estético (a descrição do mundo vivido através do imaginário). “Estamos instalados no meio de um visível de que não temos a chave”, diria Merleau-Ponty, com o sotaque de Drummond. Não ter a chave do visível significa a impossibilidade de visão por transparência, iluminação frontal, sem interstícios. Pois a não ser no caso divino, no ponto de vista de Sirius, ou no epiciclo de Mercúrio, que lembra Montaigne, ver significa ver em parte, de algum lugar, em algum tempo humano e de feições humanas, ao menos por enquanto… Mas é essa incapacidade de iluminação total que produz o fenômeno do visível: as coisas não estão simplesmente aí, o que quer dizer que precisam ser vistas para que apareçam como objetos deste mundo. Ora, é essa idéia que pavimenta o texto inacabado, devido à morte prematura, de O visível e o invisível. Há um gradiente de invisibilidade que alimenta o visível na impossibilidade de passagem para o reino do “em si”. Uma pedra, em si, não é nada, perto do edifício poético de Drummond, tanto quanto um rio, em si, não é nada, junto ao fluxo de imagens de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto. Não ter a chave do meio visível significa a possibilidade de contar, apesar do “dogmatismo do senso comum e do dogmatismo da ciência”, com o grande enigma da existência. Deles a arte presta conta, não com a precisão da matemática, nesses tempos de técnica, mas com a força das imagens que “barram o caminho e meditam, obscuras, contra a tentativa de decifração” (do poema “O enigma”, de Drummond). Afinal de contas, se “a descrição de uma história pode significar o mundo com a mesma profundidade do que um tratado de filosofia”, como diz Merleau-Ponty, então arte e filosofia, estética e fenomenologia não estão aí para explicar, mas compreender o mundo constituído e como as coisas são nomeadas.
Ultrapassando a objetividade do mundo, que é derrisória, não era a concordância com a Stimmung do poeta o ponto de partida da reflexão fenomenológica sobre a obra de arte em Merleau-Ponty? Mas atenção: a subjetividade do poeta, as tão famosas “vivências”, em sentido psicológico, eis aí o mais derrisório ainda. Só resta a pedra do caminho, o rio Capibaribe, as obras primas, desafiando o tempo cada dia mais e mais perdido.

Cristiano Perius é doutor em Filosofia pela UFSCar, com especialização na Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne)

O gesto teatral de Roland Barthes


CULT - Publicado em 14 de março de 2010

A idéia de teatralidade transborda a noção habitual. Barthes vê teatro em toda parte.


A teatralidade acompanha cada momento do trabalho de Roland Barthes. É uma obsessão determinante e produtiva: produz os efeitos maiores de um pensamento tanto mais coerente quanto mais descontraído e divagante. Barthes não se interessou primeiro pela questão da teatralidade. Também não se tornou propriamente um teórico desta. Mas levou a reflexão para além das categorias, dos campos e dos objetos esperados.
Barthes interessou-se inicialmente pelo teatro. Nos anos de 1930, estudante na Sorbonne, foi um dos fundadores do Grupo de Teatro Antigo; representou assim, com algum receio, o papel de Dario nos Persas de Ésquilo. Nos anos de 1950, com Bernard Dort, foi um dos pilares da revista Théâtre Populaire, fundada na esteira do Théatre National Populaire de Jean Vilar, e abrigada cada vez mais radicalmente sob o signo do teatro materialista de Bertold Brecht. Não é sabido e nunca é demais dizê-lo: Roland Barthes escreveu então dezenas de artigos sobre teatro1, e eles estão na origem de sua notoriedade, tanto quando a publicação de O grau zero da escrita ou as crônicas das Mitologias, estampadas durante vários anos na revista de Maurice Nadeau Les Lettres nouvelles.
Acontece, porém, que o teatro transborda o teatro propriamente dito. Barthes vê o teatro em toda parte. Releiamos a abertura de O grau zero (1953): o que lhe interessa não é tanto a literatura, nem mesmo a escrita, mas “o teatro dos signos” exibido em cada novo livro, cada novo estilo, cada nova estética, para existir e ser reconhecido. E o volume inteiro das Mitologias (1957) explica e denuncia como a produção arranjada dos signos glorifica os produtos do consumo de massa, um novo carro, um novo esporte ou uma nova revista.
Poderíamos então acreditar que, ao passar a um estruturalismo arrazoado (nos anos de 1960), e depois a um textualismo desenfreado (nos anos de 1970), Barthes abandona a questão da teatralidade. Não é tão simples, primeiramente, porque tal periodização de seu trabalho é grosseira e enganadora, e também porque é justamente o contrário que acontece: a teatralidade permanece ligada a todos os conceitos maiores de Barthes, como a estrutura, o prazer ou o neutro.
É que a teatralidade não é o teatro: ela seria mais a suspensão, ou a divisão, ou a contradição. Barthes se opõe ao que ele gosta de chamar de “histeria” do teatro ocidental, do classicismo ao naturalismo. É também essa rejeição da histeria que justificará, por muito tempo, sua resistência a Antonin Artaud (1896-1948). Barthes busca, pelo contrário, impor o modelo do distanciamento brechtiano. O “teatro múltiplo” de Brecht é aquele que mostra, que cita e repete, é o teatro que recorta os gestos, compõe as figuras, interrompe as narrativas, é o teatro que não visa a exprimir o sentido, mas a transformar o real. É o teatro do gestus. Barthes gosta dessa noção de Brecht e a define como “o esquema histórico que está no fundo de cada espetáculo”2. Ele colhe aí sua célebre definição da teatralidade, curiosamente aparecida num artigo sobre o teatro de Baudelaire: “A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de sensações que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior” (OC, II, 304).
Em suma, a teatralidade consiste, ao mesmo tempo, em produzir um signo e denunciá-lo: o que contribui para desalienar a representação. É exatamente o que Barthes não cessará de repetir acerca da teatralidade dos signos literários, de O grau zero da escrita a Fragmentos de um discurso amoroso, é “o gesto fatal pelo qual o escritor aponta, com o dedo, a máscara que usa” (OC, I, 195). Daí as análises sempre materialistas de Barthes, que inscreve cada escrita num conceito historicamente determinado do modo de representação que ela dá a si mesma.
A tarefa do mitólogo, a tarefa do crítico literário? Uma tarefa teatral, realizar um gestus. Como no teatro brechtiano: tomar um objeto, expô-lo, explicá-lo, distanciá-lo. E é essa desalienação que o oferece ao leitor, ao espectador. Eis porque o teatro de Barthes poderá ser ao mesmo tempo sinalético e existencial, enfático e empático. Desde o artigo de 1954 sobre Baudelaire, Barthes redobra sua definição da teatralidade: ele a vê também no “sentimento, no próprio tormento, por assim dizer, da corporeidade perturbadora do ator” (OC, II, 206). É essa perturbação corporal que produzirá os textos dos dez últimos anos. O livro no qual Barthes realiza e, ao mesmo tempo, transborda a análise estrutural da narrativa, S/Z (1970), trata de uma novela de Balzac que encena um jogo erótico e fúnebre de máscaras em torno de um castrado. Em Sade, Fourier, Loyola (1971), que parecia anunciar a volta do autor em carne e osso, que se acreditava desaparecido para sempre da análise textual, a leitura do anonimato das figuras sadianas toma corpo “assistindo a um espetáculo de travestis num cabaré parisiense” (OC, III, 813). Lê-se também, no prefácio, que “teatralizar é ilimitar a linguagem”. As categorias que se colocam, o jogo dessas oposições que transbordam todo paradigma, o romanesco oposto ao romance, a estruturação oposta à estrutura, a produtividade oposta ao produto, definem a teatralidade do texto, pois, a cada vez, o primeiro termo distancia o segundo, diz Barthes, como um “gesto anafórico sem conteúdo significativo” (OC, III, 501).


É também depois de suas viagens ao Japão, no fim dos anos de 1960, que outro modelo teatral apareceu. Barthes se apoiará, aliás, na fascinação de Brecht pelo teatro oriental, para reforçar a coerência de seu propósito. O que o assombra, nas formas do kabuki, do bunraku ou do nô, é uma relação com a morte que não passa por uma crença histérica, mas que se expõe, “sem significação, mas fazendo apelo à profundidade de todo signo possível”, para retomar uma fórmula de Maurice Blanchot (1907-2003) citada em A câmara clara (OC, V, 973). Nessa força misteriosa do teatro japonês, Barthes vê um prolongamento dos efeitos da máscara antiga e, de maneira mais moderna, vê aí uma variação sobre os efeitos daquilo que ele chamou, desde O grau zero até seus últimos cursos no Collège de France, O neutro.
A proeza, a coerência de Barthes é já ter falado do neutro a respeito de Brecht. Não há distanciamento, diz ele, sem um jogo dialético entre a forma neutra do fundo cênico e a forma significante do objeto teatral. Aliás, é sempre assim que Barthes lerá a imagem: toda imagem, segundo ele, condensa um uso dialético do signo como sinal, e um uso neutro do silêncio imposto pela morte. Sucessão de imagens vivas, o teatro permanecerá, para Barthes, até o fim, mesmo quando ele deixará de freqüentá-lo, mesmo que a título de lembrança ou de eco, aquela força maciça de uma manifestação suspensiva e redobrada de um estar-ali (trágico, político, erótico…), irreconhecível, mas pedindo para ser reconhecido, com um reconhecimento que não se exerce mais sobre uma intriga fictícia, mas sobre interesses reais.
É por isso que os textos mais interessantes de Barthes sobre a teatralidade não tratam necessariamente do teatro, pelo menos no sentido habitual. Penso nos textos dos anos de 1950 sobre a luta livre, o cabaré, o music-hall, ou naquele texto de 1978, sobre o “Palace”, vasta discoteca instalada num antigo teatro parisiense. No “Palace”, aquele “teatro salvo”, Barthes fica num belvedere para observar “o imenso espetáculo da dança e dos corpos” – “corpos jovens”, diz ele. No balcão do “Palace”, como no galinheiro do “Chaillot”, aos 62 anos como aos 38, é “a exterioridade admirável das situações, dos objetos e dos corpos” (OC, V, 456-458). Assim, “a função erótica do teatro não é acessória, porque somente ele, de todas as artes figurativas (cinema, pintura), dá os corpos, e não sua representação (OC, IV, 660).
O pensamento de Barthes sobre o teatro, sobre a teatralidade do teatro e de qualquer outra forma além do teatro, termina, pois, na “intersecção problemática” do afeto com o signo3. Ele aí termina porque o acaso de um acidente pôs um ponto final. Não há dúvida de que Barthes teria continuado a falar de teatro e a falar de tudo com o teatro. E é bom, também, que esse fim seja uma encruzilhada. Uma encruzilhada que deveria permitir-nos questionar o teatro a que assistimos hoje.

(Tradução de Leyla Perrone-Moisés)

NOTAS

1 A Editora Martins Fontes publicou os Escritos sobre teatro (N. da T.).
2 Œuvres complètes, Paris, Seuil, 2002, vol. II, p. 316. Esta edição será doravante designada pela sigla OC.
3 La préparation du roman, Paris, Seuil, 2003.

Christophe Bident
é professor da Universidade de Paris 7, autor de Maurice Blanchot, partenaire invisible (Editions Champ Vallon, 1998) e diretor da companhia teatral Le Théâtre de l’Aube.

terça-feira, 23 de março de 2010

A nova antropofagia

Publicado originalmente por Omar Salomão e Rodrigo Gameiro em 03/11/2004.

O espetáculo estreou em abril, no Centro Cultural Sérgio Porto, para ficar apenas três semanas em cartaz. Mas a casa sempre cheia o levou a ser prorrogado por nove meses, agora no teatro Cândido Mendes. No embalo da peça, Michel Melamed ainda conseguiu lançar o livro Regurgitofagia e lançar as bases de sua proposta radical.

Como surgiu a idéia da peça? Da "regurgitofagia"?

Michel Melamed. A peça é um conceito e é um livro, criados a partir de textos que eu venho escrevendo já tem tempo. Regurgitofagia é limitar os excessos para avaliar o que de fato queremos redeglutir. Consciência crítica. É uma reflexão sobre o modus operandi antropofágico. Você não deve deglutir tudo. E aí a pergunta: A gente continua tendo a possibilidade de discernir? Ou as coisas vão sendo enfiadas goela abaixo? Então a proposta é vomitar, regurgitar. Escolher, "isso aqui é ruim", "isso aqui é bom", e comer o que a gente selecionou como bom. Acontece que a máquina não instaura isso a priori. Quando a pessoa entra no teatro, o texto em off de abertura fala que o jogo é o seguinte: a qualquer reação sonora, o ator vai receber descargas elétricas. Nesse exato segundo, a pessoa já é colocada numa posição de reflexão. Ela é obrigada a decidir, e aí tem essa coisa de simbiose de grupo. Uma maioria decide uma coisa e todos passam a agir daquela forma. Muitas vezes as pessoas resolvem que não querem me machucar, ficam em silêncio, o espetáculo adquire um tom mais tenso, vai numa outra direção. Ou as pessoas abstraem completamente, começam a se relacionar com o texto e aí vão me dando choque sem perceber. Outras vezes, rola um sadismo de querer testar e as pessoas fazem sons aleatórios. Eu estou falando, as pessoas nem estão ouvindo o que estou falando e estão me dando choque. São opções, reflexões.

É uma opção conceitual?

Melamed. Lógico que não é só isso, acho que tem uma série de espelhamentos. O que está sendo contado na cena? A pessoa é colocada numa situação de reagir em relação à contemporaneidade, ao que acontece. Só que eu não boto a realidade. Eu boto a realidade vomitada e deglutida por mim. Então, se a pessoa se identifica com a minha visão crítica, isso significa que, se ela ri, de alguma forma compreendeu a idéia e pensou assim: "É verdade, João Kleber é uma bosta". Ou: "É verdade, um casamento gera esse ciclo". Ela é colocada numa situação involuntária paradoxal à que está sendo proposta. Quanto mais ela refletiu e se identificou, mais ela pune. Então são uma série de espelhamentos. Enfim, o choque tem um milhão de leituras. Eu estou tomando um choque, mas na verdade estou é querendo chocar o outro, como muita gente se choca com o choque, entendeu?

A idéia é não saber como reagir?

Melamed. É isso. Caramba, ah! legal, ih! (imita uma pessoa tomando choque) Será que eu rio? Gera-se uma situação de conflito, uma situação de conflito gera reflexão e reflexão é a proposta "regurgitofágica". Acho que a máquina é isso, ela tem uma série de componentes que são completamente imbricados, ela não é uma alegoria, não somente.

Você já escrevia pensando no espetáculo ou escrevia como poesia?

Melamed. Alguns fragmentos sim... outros não... Eu não parei e pensei: vou fazer um espetáculo.

Em um CD do CEP 20000, já aparece você recitando um poema de Regurgitofagia.

Melamed. É. Era um poema, só que na verdade eu desmontei e coloquei em duas partes. Eu tirei uns pedaços. É isso, eu não podia me ausentar a proposta. É uma auto-regurgitofagia. Eu não me poupei de pegar os textos mais antigos, textos mais novos, textos que eu escrevi três dias antes de estrear. A idéia era que eu me disponibilizasse nesse jogo também. Mas o conceito "Regurgitofagia", essa reflexão sobre a questão antropofágica, é anterior. Eu já tinha muitos textos. Aí eu pensei, quero escrever o espetáculo. Pintou a bolsa RioArte. Mandei o projeto pra eles. "Regurgitofagia" já tinha toda a explicação desse conceito.

Já havia a idéia do choque?

Melamed. Não. Falei: quero escrever o roteiro de um espetáculo que tenha uma interface tecnológica. Aí o que aconteceu foi que eu comecei a fazer as pesquisas, estudar a tecnologia. Comecei a pensar em uns telões. Quatro meses depois, fiz orçamento e deu 300 mil reais. Então, a minha pergunta foi: eu sou um artista brasileiro, carioca, em começo de carreira, tenho que fazer alguma coisa que seja compatível com o meu tamanho, com a minha realidade, com o país que eu vivo, com o artista que eu sou. E uma das críticas reincidentes à bolsa RioArte é que as pessoas não entregam os relatórios. Outras entregam e fica uma brochura dentro do armário. Desde o início eu queria colocar em cartaz o negócio. Nesse meio tempo, tinha aparecido o prêmio Sergio Motta, lá em São Paulo, e eu com essa idéia da máquina, que surgiu de um outro texto chamado "Para você que não desapareceu em 68 só porque não era nascido". Era sobre um cara que vive na contemporaneidade, mas estaria deslocado no tempo, não se sabe exatamente onde esse cara está. Reflexões sobre esse blá-blá-blá equivocado de que não se tem mais tanque na rua, que é mais difícil, de que não tem inimigo. O que é uma mentira, entendeu? O inimigo está aí. Você não tem um AI-5. Lógico que tem. Que liberdade que você tem? Você entra no lugar que você quiser? Você tem o que você quiser? Você não tem! Você tem uma série de cerceamentos, fruto da supremacia do capital, e isso vocês sabem muito bem. Moral da história é o seguinte: mandei para lá o projeto, não ganhei. Estava com a questão do efeito retrovisor, quando em uma expressão de arte e tecnologia, você desloca tecnologias que já existem em outras áreas para o meio artístico. Por exemplo: vídeo. Aí você vai numa peça e coloca um vídeo. Isso não é arte e tecnologia.

Por quê?

Melamed. Unir arte e tecnologia é você criar uma obra que tenha uma interface que não se adapte, mas que seja contruída para isso, na relação de um artista com um engenheiro, de um artista com um técnico, para criar uma coisa nova. Aí me caiu a ficha: "Regurgitofagia" é a máquina. Quando eu falo pro cara que vai ao espetáculo que a sua reação sonora vai gerar choque no corpo do ator, estou oferecendo um jogo para a pessoa que a obriga a refletir. É muito rico. É a materialização do conceito. Foi aquele efeito dominó, foi caindo a ficha, eu falei: Caralho! A máquina e o conceito são uma coisa só. Depois que concluí o projeto, o pessoal da (galeria de arte) Contemporânea, me chamou pra fazer. Fiz mais como se fosse artes plásticas, tinha um teleprompter de televisão, porque o texto não estava decorado. Era como se fosse uma instalação, eu ficava parado, falando. O triplo do texto, duas horas, eu falando sem parar a mil por hora, e as pessoas em volta. Era teatro, mas elas podiam andar. Era uma galeria, elas andavam, paravam, riam, e eu tomava um choque. Depois resolvi entrar em cartaz e convidei o Marco Abujamra e a Alessandra Colasanti, meus amigos artistas e eles me ajudaram a pegar os textos, botar na cena.

Os choques mudam teu corpo? Como fica seu estado físico na noite depois da peça?

Melamed. Não, não mudam nada. Na peça, quando começo a suar muito, sinto que os choques dão uma aumentada forte. Por isso tem um cara na máquina que, por questão de segurança, baixa a potência. Tem uma área de registro ali para baixar a descarga

Nas primeiras sessões você regulava com mais freqüência a potência dos choques?

Melamed. Eu quase morri. Na passagem de som na Cândido Mendes, ligamos a máquina de maneira errada. Tomei uma descarga de 220 volts. Voei uns 5 metros. Fui parar no Pró-Cardíaco. Fiquei muito apavorado. Agora estou trabalhando com o mínimo. Antes estava empolgado, ficava doido com os choques. Quando você está suado, no meio do espetáculo, aí vem a descarga, você faz assim (se encolhe). Você treme, entendeu? Dá um efeito bonito, mas fiquei apavorado. Agora só uso o choque como referencial.

Na parte da peça em que você está comendo vômito no saquinho de avião, você treme. É efeito do choque ou é parte da montagem cênica?

Melamed. É um misto. É a primeira cena em que eu paro. Já é bem no meio da peça, se eu estou suado, já estou suado, se estou emocionado, já estou emocionado. Aí dá aquela parada. É como se você saísse de um pique de 500m, aí para, uhf...uhf... Vi que eu já estava algumas vezes tremendo, aí hoje em dia eu forço um pouco pra chegar a isso. Um misto de natural com forçado.

Como você vê essa relação do choque com a platéia. É uma forma direta de interação?

Melamed. Esse é o objetivo, né? Os objetivos são vários, acho que o choque tem uma série de leituras e que uma das coisas mais interessantes é que são tantas leituras. É sempre bom me surpreender com novas interpretações, como, há poucos dias, com alunos da UFRJ que Marcos Breda, o diretor de teatro, levou lá no debate. Um cara fez uma relação que eu não tinha atinado, me esqueci agora, mas enfim. O meu entendimento de um trabalho artístico é esse, a possibilidade de diferentes interpretações. No (Centro Cultural) Sérgio Porto o espetáculo começava à meia noite, e o Sérgio Porto tem uma tradição experimental, é freqüentado por muito artista. Depois fui para o Teatro Cândido Mendes, e começou a vir um público comum. O público comum se relaciona com outras camadas do espetáculo que nunca me ocorreram. É muito rico! No final você vê isso, a obra de arte está no olho mesmo. As coisas são a partir do olhar, é o olhar que tem que ter qualidade. Tem aquela frase que eu não lembro nunca de quem é, "o livro é um espelho" (G. C. Lichtenberg). A obra de arte é um espelho. Mário Quintana fala "que aquilo é o que relete dois espelhos que frente a frente se fitam". Então é esse jogo de espelhos que se vê. Agora, qual o objetivo do choque? Uma primeira relação que eu mapeio é diretamente com a ditadura no Brasil. Até antes do golpe de 64, a coisa de Filinto Muller, a tortura no Brasil sempre foi muito usada e é usada até hoje.

Tem a ver com o próprio nome que você colocou no equipamento elétrico da peça, pau-de-arara?

Melamed. Pau-de-arara é um nome brasileiro.Em alguns lugares do mundo é chamado de "Pau de Arará". Made in Brasil. Brasil exporta tortura. Então, a primeira coisa é a síndrome da tortura, a outra é a síndrome do louco sendo torturado.

Quando explica a Regurgitofagia, você fala de selecionar. Mas o seu espetáculo é um excesso de informação, você fala rápido e muitas vezes o público se perde nas próprias associações. Não seria um paradoxo, já que a crítica é ao excesso de informação imposto diariamente?

Melamed. Não é só a velocidade e a quantidade de informação, mas a qualidade. Toda a situação do espetáculo é crítica, a questão é a morte do significado. Dei esse exemplo clássico do (Roland) Barthes: uma porta é uma porta, mas uma porta com uma cartola é um banheiro. São significantes se relacionando, gerando o significado, então, pelo fato de eu falar rápido, simplesmente isso não tem significado? Isso tem um significado a partir do momento que é um teatro, é aquele cara falando daquele jeito, com aquele figurino, com aquela máquina e com aquele conteúdo de texto, aí passa a ter outro significado, senão seria muito superficial.

Como a peça virou livro?

Melamed. Isso é que foi um grande desafio, porque o meu desespero final foi: porra isso é literatura. No meu projeto, tudo parte da literatura. A literatura é a base de tudo, é o quebra-cabeça que vai permitir essa reflexão toda, o que dá dimensão para tudo, e é o pontapé inicial de qualquer coisa, Por exemplo, como apresentador de televisão, eu é que escrevo os roteiros, o roteiro é antes do programa, Tudo ali é literatura. Então eu fiquei apavorado. Eu tive o trabalho de transformar o texto em espetáculo, e depois estava tendo o trabalho de transformar o espetáculo em texto. Não adianta pegar e passar o espetáculo pro papel e dizer: "lê aí". Bolei essa coisa da malha (O livro é ilustrado por uma malha construída de fragmentos de papéis, repletos de anotações). Eu tenho um baldão na minha casa dessa altura, porque no período dos 16 aos 22 anos tive uma espécie de compulsão. Eu começava a escrever em tudo o que era papel, até no corpo. Aí eu tenho um baldão com tudo escrito dessa época, e pensei: isso é o "Regurgitofagia". Pedi que eles fizessem essas malhas, fiz uma separação do texto. E foi do caralho, porque foi o maior êxito para mim, quer dizer, um dos maiores êxitos, porque esse projeto está com muitos êxitos e muitas coisas bacanas aconteceram. Mas aonde eu senti realmente um êxtase foi quando saíram as críticas do livro e ele foi recebido e entendido como obra literária, o que era o objetivo primeiro e final.

E a dificuldade para se editar um livro? Você precisou da peça para driblar a resistência do mercado?

Melamed. É uma dificuldade, mas, porra, tudo é uma dificuldade, a questão é essa. A brincadeira é assim, tudo é difícil. A vida é muito mais crua, cruel, do que a gente imagina. Por isso que essa coisa do gênio. O Waly (Salomão) falava isso, citando Oswald (de Andrade) "O gênio é uma besteira". Eu lembro do Waly falando isso "O gênio é uma bobagem, Viva a rapazeada!" É um pouco isso. O gênio é uma bobagem mesmo. O gênio é fruto de circunstâncias. É lógico que tem pessoas que tem determinadas vocações, direções, mas tem 70, tem 100, tem 300. É em função das oportunidades que eles vão surgir. Porque aquele cara que era tão bacana quanto o outro ficou mais bacana? E depois ficou bacana pra caralho e ficou fodão? Tudo isso é fruto de ser lapidado. É muito difícil e tal, mas quando o pessoal lá do (Marcos) Breda foi conversar comigo, uma menina perguntou: "Mas você é também produtor da peça, qual a maior dificuldade de produzir?" Aí me caiu a ficha de dizer pra ela que a maior dificuldade de produzir é o medo de produzir. Porque só o que existe são dificuldades. Você ter conseguido o copo d'água e não ter conseguido o café, ou ter conseguindo o adoçante e não ter conseguido o guardanapo, isso não faz diferença. O que faz a diferença é o seu desejo de falar: "Foda-se, eu vou fazer!" E aí dá-se um jeito e esse é o êxito. O êxito é a capacidade que você tem. E os meios produtivos são a própria obra, isso que eu tava falando antes. Você é um artista, você tem um livro. Você tornar esse livro num objeto que pode chegar à mão do outro, isso já é a obra. O primordial é você produzir a sua obra. A literatura é a forma de produção mais fácil, você tem um papel e uma caneta e você pode produzir 10 mil livros. E em algum momento isso pode vir a interessar ou não. Agora, para participar da discussão, da produção cultural do seu país, da contemporaneidade, do mundo, você tem que fazer com que teu trabalho chegue até as pessoas. Esse é um compromisso modernista, né? A realização da obra é parte integrante da obra. Então, é difícil fazer um livro? É! Mas é difícil qualquer coisa. É difícil acordar e limpar a bunda? É! É difícil escovar os dentes, arrumar a cama? Tudo é difícil. Não é "o que", é "como". "O que" é o menos importante, o importante é "como" é que você vai fazer. O livro não é independente, esse papo de independente é uma furada, é querer virar gueto.

Como você vê a relação entre a poesia e teatro?

Melamed. Recitar, eu não costumo usar essa palavra, porque, infelizmente ou felizmente, ela já tem um valor agregado. Eta expressão escrota, né? "Valor agregado". Parece um texto que eu escrevi pro jornalzinho do Circo Voador sobre "público qualificado". Parece ser a mesma coisa. Diarréia é uma palavra linda. Público qualificado é escroto. Mas escroto é legal, e legal é legal. E público qualificado é uma merda, e merda é legal. Mas aí o negócio é o seguinte. Recitar vem impregnado de uma coisa que parece descontextualizada do que eu estou pretendendo. Nossa ousadia é fazer m trabalho que seja uma integração de linguagens. É teatro experimental no sentido a que Peter Brooke se refere. Segundo ele, existe o teatro nacional, que é responsável pelos clássicos, teatro musical, que é entretenimento, e o teatro experimental, que está trabalhando com linguagens. Performances, porque tem uma série de componentes ali de performances, aquilo da improvisação, da novidade, do que está acontecendo naquele momento, etc. Poesia falada, já que tem a tradição da poesia falada que vem dos beats. Os trovadores, os rapsodis, Lenny Bruce. Tem um outro elemento que também está ali, o Stand Up Comedy, que é a tradição americana de fazer o humor só com a palavra. E artes plásticas, porque eu acho que não deixa de ser uma cena de artes plásticas. Tem uma cena plástica acontecendo com uma máquina em funcionamento.

E o papel do figurino?

Melamed. É, entra nessa mesma questão, o figurino é deslocamento. A cena poderia ser eu com a minha roupa lá. Mas aí a identificação seria simples. Mas não tem que criar uma outra camada, deslocar. Hã? É um samurai? Hã? É uma camiseta feita de camisetas? É essa possibilidade de gerar essa faísca, essa coisa que leva à reflexão. Então o espetáculo, a nossa ousadia, a nossa pretensão é fazer uma integração de linguagens. No meu trabalho especificamente eu não vejo poesia e teatro. Eu vejo tudo!

No poema final, dedicado ao poeta Waly Salomão, você passa cristal japonês sob os olhos, chora e começa falando "Haja Marginal/ Haja herói", remetendo à frase de Hélio Oiticica. Como operam essas influências sobre você?

Melamed. Tem várias questões aí. Há uma questão prática do teatro, que tem a ver com (o dramaturgo Bertold) Brecht, do distanciamento. Este pedaço da peça é uma homenagem ao Waly (Salomão), um cara que eu gostava pra caralho, que eu admirava. Este poema foi escrito quando o Waly faleceu, foi na noite do evento, "Um Alô para Waly: alimento para novas gerações". Eu escrevi para aquele evento, é uma homenagem para ele. Na hora de colocar no espetáculo, entra esta questão do deslocamento. É real o texto? É uma homenagem ao Waly? É! Agora, não tem sentido, num espetáculo em que eu estou querendo proporcionar uma série de reflexos e uma consciência crítica, chegar e falar assim: "Ó, agora parou! Agora é o momento homenagem! Vamos todos cantar de coração..." Não! Eu precisava deslocar. Eu estou emocionado e tal, mas eu trago um elemento que é o elemento da fantasia, de pegar um expediente que é usado pelos atores. O poeta é um fingidor, o ator é um fingidor. São! Mas o importante não é se o cara está fingindo ou não. O importante é se o cara consegue passar para o olhar do outro a leitura do que a cena pressupõe. Isso se usa na novela e emociona. É aquela história do Paulo Francis, que dizia: "A ópera é o único lugar onde o cara leva uma facada e continua cantando". É isso. O cara não levou uma facada. Ele está querendo te contar uma história de alguém que levou uma facada. Eu, no caso, estou querendo contar a história de um cara que está emocionado. Mas com o distanciamento necessário para que todas esse matizes e espelhamentos fiquem claros.

E Hélio Oiticica?

Melamed. Uma das informações que ficam da obra de Hélio é a questão do artista na posição do marginal. O cara que precisa quebrar uma série de códigos, precisa se instaurar. E isso não no sentido da arte marginal, mas no sentido de uma arte plena. Da arte plena, de você ter coragem de desmascarar, coragem de falar o que você está achando, etc. Como existe o pensamento único, como está muito difícil de você conseguir individualizar, que é a coisa mais importante, as pessoas realmente devem buscar as suas diferenças. É preciso um grito de "Haja Marginal / Haja Herói" para poder dar conta dessa realidade. Precisamos muito de marginais, heróis artistas, olhares artísticos. Está faltando 6 bilhões de projetos, sabe? Têm poucos.

E para você, enquanto ator, quais as diferença entre fazer um monólogo e outras experiências teatrais?

Melamed. Eu tenho muita pouca experiência como ator. Até na grafia do espetáculo eu coloco "a(u)tor". Coloco ator e, entre o "a" e o "t", eu coloco o "u" entre parênteses. Seria esse personagem um outro. A minha proposta é de viver, eu quero um salto no abismo. O objetivo é esse, testar os limites, me colocar em situações de risco. Esta coisa de atuação surgiu para mim dessa forma. Eu trabalhava na escola, e fazia muitas peças. Depois eu larguei completamente. Há muitos anos eu faço apresentações com os meus textos. De uns quatro anos para cá começaram a me convidar muito para fazer personagens. Eu só tinha feito na escola, não era um projeto meu, nem me sentia apto a isso, e fui recusando . Aí o Matheus (Nachtergaele) me convidou para fazer Woyzeck. Eu recusei várias vezes. Sou amigo dele e dizia: "Pô Matheus, não vai dar para fazer". Até que chegou uma hora que eu pensei: "O Matheus é um dos artistas que eu mais admiro e está me chamando para fazer uma peça com ele. Tá louco! Eu quero me expandir. Eu quero crescer!". E aí, entrei e fiz um papel no Woyzeck com o Matheus. Depois continuaram me chamando. Então eu tenho trabalhado com isso hoje em dia. E eu esqueci a pergunta...

A diferença prática entre o monólogo e suas outras experiências como ator.

Melamed. Então é isso, eu não tenho essa grande experiência para talvez vaticinar. O que eu posso dizer é que, no que eu vivi até hoje, é muito parecido a partir do momento, principalmente neste espetáculo, que a relação com o público é direta, eu tenho que olhar no olho das pessoas. Não existe quarta parede. Eu não estou contracenando e, chega no final, eu olho para ao público e agradeço. Estou o tempo todo olhando para a cara das pessoas. Contracenando com o público. E quando você contracena é isso, você tem que olhar na cara do outro porque resolvemos brincar que você é o coronel e eu sou o lobisomem. Eu não tenho tantas experiências para dizer. Há pouco tempo fiz um curta-metragem que eu amei. Estou doido para ver o resultado. Se o resultado for um décimo do prazer que eu tive fazendo, vai ser do caralho. Eu começava a filmar às 6h da manhã e chegava em casa às 10h da noite feliz. Eu fazia um traficante. Criei uns traquejos. Eu tava cheio de parada, um queixo assim que rodava quando eu falava. Eu fiquei tomado pela entidade. Foi legal.

É curiosa a reação das pessoas quando você sai do teatro gritando "Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!". Especialmente por ali ser uma faculdade. As pessoas se espantam e te olham.

Melamed. Teve uma vez que eu quase briguei.

Por quê?

Melamed. Foi no segundo dia. No primeiro dia em que entrei na Cândido Mendes, eu pensei: cara, vou fazer a parte do 'Abaixo a Ditadura!' do lado de fora, vou sair do teatro. Na estréia, fui aplaudido em cena aberta, as pessoas se emocionaram. No segundo dia, eu estava empolgado, fui sair do teatro, abro a porta e começo a gritar: "Abaixo a ditadura! Abaix..." Quando eu olhei tinha um pitboy na minha frente, o cara troncudo, com a orelha esmagada, sabe? E eu parei na cara dele e já tava berrando, sacou? O cara se virou pra mim e começou a falar: "O que é isso rapá? Ô meu irmão, é contigo! Cala a boca rapá! Cala a boca mermão!" E eu não podia parar, continuava gritando: "Abaixo a ditadura! Abaixo a ditadura!" E ele: "O cumpadi....". Aí chegou um amigo dele, que botou a mão no ombro e disse: "Calma cara... Isso é teatro". Ele respondeu: "Não! Eu tô mandando o cara calar a boca, ele tá me desrespeitando!" Então, pensa só... Foi isso. Já que ele quis, era pra ele então: "Abaixo a ditadura mermão!" Agora é isso. A diferença é que é um barato. Agora está o público do mundo. Crianças, adolescentes bem novos, uns senhores, uns coroas. É rico porque, uma coisa é: "Haja marginal, Haja Herói". Pô, vocês (os entrevistadores) estão sabendo de tudo. Estão sabendo do Waly, estão sabendo do Hélio Oiticica, estão sabendo do Cara-de-Cavalo. Outra coisa é alguém que nunca ouviu falar em nada ouvir "Haja Marginal, Haja Herói". Acham que é novidade. Então o retorno que se tem disso é muito rico. Você vai redescobrindo as palavras, É bom, renova o frescor. É um desodorante de altíssima qualidade. É uma ducha.

E a relação que o aluno do Marcos Breda fez, que você tinha citado anteriormente. Você lembrou que relação é essa ?

Melamed. Relação... Lembrei! Ele falou da relação da peça com a máquina. Que é uma das camadas que obviamente estão mais claras para mim, mas não é a primeira que me salta aos olhos. Mas é lógico que está o tempo todo colocada lá: a relação Homem-Máquina. Está no texto pro Waly, está no texto final do homem de lata. Está no fato da peça ter uma interface tecnológica. Mas a primeira coisa que saltou para esse aluno foi esse negócio da máquina. E eu disse para ele que primeiro tem a coisa do golpe militar, depois a coisa do louco que toma eletrochoque. Um dos momentos altos da peça é a pergunta: "Porque o Homem existe?". Nessa hora do texto, quando eu estou falando "Haja gente para ter o olhar renovado, haja multiplicidade, haja marginal, haja herói", digo "Qual sentido da vida... das máquinas?". Quando eu penso nas máquinas, penso nas pessoas maquinarias, no cara que vê a televisão e é a televisão, no cara que é o pitboy e é a porrada. Aqueles que não enxergam mais nada além daquilo. É o pitboy que é a máquina. De repente, o cara é uma centrífuga. O cara só sabe centrifugar. Apareceu um ator na frente dele, ele não entende que é teatro. O cara é uma máquina, só sabe fazer de um jeito. Então quando eu falo: "Qual é o sentido da vida das máquinas?" Experiência não é viver coisas. Experiência é refletir sobre as coisas que se viveu. O cara pode ser muito novo e muito experiente. Essa é uma frase que eu sempre lembro, do Alfredo Bosi, professor da USP. E ele fala que hoje em dia a gente abre a mão da herança, de maneira geral. Existe um legado, existe herança de tudo. Herança do povo judeu, a herança dos escritores. Tudo são heranças. É só uma questão de você chegar e requerer, falar: eu quero o meu quinhão disso, eu quero a minha herança da história do pensamento ocidental, eu quero a minha herança do pensamento oriental. É isso. E tem uma galera que está abrindo mão de herança. Os caras estão aí com um puta quinhão para receber e não reclamaram o que é seu de direito.

Confira no site Errática trechos da peça Regurgitofagia.

http://www.literal.com.br/artigos/a-nova-antropofagia

segunda-feira, 22 de março de 2010

Santo/amargo


O Amargo Santo da Purificação - Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz - POA

                                                                                                                               Edélcio Mostaço

Quase todo mundo conhece a expressão de Marx: “é preciso mudar o mundo e não interpretá-lo”. Helio Oiticica vislumbrou uma outra direção: “é preciso que o mundo seja mundo do homem e não mundo do mundo”. A encenação de O amargo santo da purificação, novo trabalho de rua criado pela Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, segue essa mesma vereda, trazendo à agenda um tema – a transformação do mundo – e uma personagem – Carlos Marighella – bem pouco convencionais.
A realização, estreada ao final de 2009, insere-se nas manifestações que recordam os quarenta anos de morte do líder revolucionário brasileiro. Dado o contexto, teríamos todos os elementos para mais uma peça de agitação dos oprimidos, mais um exercício para a retórica coletivista, mais uma encenação épica erigida sobre chavões.

Não é o que ocorre. A primeira grande aventura do Oi Nóis foi a de privilegiar os poemas escritos pelo revolucionário e não seus discursos ou textos de militância. O material dramático de base, portanto, é de natureza lírica e, embora refira aqui e ali fatos ou acontecimentos vividos por Marighella, sua matriz está fundada nos sentimentos, nas emoções, nas aspirações que animavam essa personagem. Essa opção ensejou a encenação enveredar pela alegoria como modo expressivo preferencial, recusando o verossímil, o documental ou o verismo.
Alegoria quer dizer falar outro, ou falar de outra maneira, datando sua primeira aparição no terreno artístico nos tratados retóricos latinos. Existem duas formas de alegoria: aquela empregada para a construção da linguagem (escrita, visual, sonora, cênica etc) e aquela empregada para a decifração das linguagens (notadamente textual e visual), tornando-a, portanto, quer um instrumento de construção quer um de interpretação.
Espetáculo de rua, O amargo santo buscou no rico imaginário popular brasileiro suas matrizes expressivas, ali selecionando fossem ritmos e passos fossem cores e formas, para bordar um espetáculo quase que inteiramente coreografado, submetido à dinâmica da alegria, da espontaneidade, da contagiante vibração que exala, mas coeso, marcado, submetido a limites bem definidos.

Glauber neoconcreto

Quem ousaria unir Marighella e Xangô? Glauber Rocha, por certo, ou o Oi Nóis; uma vez que a leitura de mundo de ambos parte de um assemelhado impulso neoconcreto: encontrar no corpo a verdade do mundo e das coisas. Tal simetria surge em cena: ao ser preso na Bahia, ainda um jovem militante do PCB, a personagem recupera a antológica cena da morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Noutra passagem, ao romper com o partido e iniciar a luta armada, o faz sob a inspiração de Xangô, a entidade que entra em cena para lhe entregar seu machado, recuperação de cena assemelhada filmada por Glauber em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. A interpretação alegórica aqui possível é aquela de Hélio Oiticica: é preciso que o mundo seja do homem.
Essas são algumas das cenas que estruturam a montagem, suficientes para filiá-la à linhagem tropicalista que a ajudou conformar-se. Outro momento de forte impacto abre a realização, quando do encontro de dois cortejos, um negro e africano e outro branco e italiano, os troncos materno e paterno de Marighella, um mulato de nome italiano e com forte atração pela cultura indígena. Temos aqui, literalmente, o espetáculo das raças que conformou o Brasil.
Metáfora de impacto é a cena que anuncia o golpe militar de 1º de abril de 1964. Um carro alegórico adentra o espaço cênico ladeado por um batalhão de policiais usando máscaras de gorilas, marchando em cadência e tudo arrastando ao redor. Máquina de guerra, o carro recupera não apenas a carnavalesca alegoria em seu sentido literal como, com muito apuro, materializa o choque existencial daquele episódio histórico.
Sem apelar para clichês, soluções convencionais ou supostos cânones de singeleza do teatro de rua, a nova encenação do Oi Nóis Aqui Traveiz subverte, simultaneamente, vários códigos estabelecidos, ratificando sua postura experimental, seu desembaraço em lidar com proposições pouco ortodoxas.
Última ironia, nesse espetáculo coalhado delas: seu subtítulo é “uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella”, reenviando para a crença mística sua metafísica trágica.

QUESTÃO DE CRÍTICA

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