Santo/amargo
O Amargo Santo da Purificação - Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz - POA
Edélcio Mostaço
Quase todo mundo conhece a expressão de Marx: “é preciso mudar o mundo e não interpretá-lo”. Helio Oiticica vislumbrou uma outra direção: “é preciso que o mundo seja mundo do homem e não mundo do mundo”. A encenação de O amargo santo da purificação, novo trabalho de rua criado pela Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, segue essa mesma vereda, trazendo à agenda um tema – a transformação do mundo – e uma personagem – Carlos Marighella – bem pouco convencionais.
A realização, estreada ao final de 2009, insere-se nas manifestações que recordam os quarenta anos de morte do líder revolucionário brasileiro. Dado o contexto, teríamos todos os elementos para mais uma peça de agitação dos oprimidos, mais um exercício para a retórica coletivista, mais uma encenação épica erigida sobre chavões.
Não é o que ocorre. A primeira grande aventura do Oi Nóis foi a de privilegiar os poemas escritos pelo revolucionário e não seus discursos ou textos de militância. O material dramático de base, portanto, é de natureza lírica e, embora refira aqui e ali fatos ou acontecimentos vividos por Marighella, sua matriz está fundada nos sentimentos, nas emoções, nas aspirações que animavam essa personagem. Essa opção ensejou a encenação enveredar pela alegoria como modo expressivo preferencial, recusando o verossímil, o documental ou o verismo.
Alegoria quer dizer falar outro, ou falar de outra maneira, datando sua primeira aparição no terreno artístico nos tratados retóricos latinos. Existem duas formas de alegoria: aquela empregada para a construção da linguagem (escrita, visual, sonora, cênica etc) e aquela empregada para a decifração das linguagens (notadamente textual e visual), tornando-a, portanto, quer um instrumento de construção quer um de interpretação.
Espetáculo de rua, O amargo santo buscou no rico imaginário popular brasileiro suas matrizes expressivas, ali selecionando fossem ritmos e passos fossem cores e formas, para bordar um espetáculo quase que inteiramente coreografado, submetido à dinâmica da alegria, da espontaneidade, da contagiante vibração que exala, mas coeso, marcado, submetido a limites bem definidos.
Glauber neoconcreto
Quem ousaria unir Marighella e Xangô? Glauber Rocha, por certo, ou o Oi Nóis; uma vez que a leitura de mundo de ambos parte de um assemelhado impulso neoconcreto: encontrar no corpo a verdade do mundo e das coisas. Tal simetria surge em cena: ao ser preso na Bahia, ainda um jovem militante do PCB, a personagem recupera a antológica cena da morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Noutra passagem, ao romper com o partido e iniciar a luta armada, o faz sob a inspiração de Xangô, a entidade que entra em cena para lhe entregar seu machado, recuperação de cena assemelhada filmada por Glauber em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. A interpretação alegórica aqui possível é aquela de Hélio Oiticica: é preciso que o mundo seja do homem.
Essas são algumas das cenas que estruturam a montagem, suficientes para filiá-la à linhagem tropicalista que a ajudou conformar-se. Outro momento de forte impacto abre a realização, quando do encontro de dois cortejos, um negro e africano e outro branco e italiano, os troncos materno e paterno de Marighella, um mulato de nome italiano e com forte atração pela cultura indígena. Temos aqui, literalmente, o espetáculo das raças que conformou o Brasil.
Metáfora de impacto é a cena que anuncia o golpe militar de 1º de abril de 1964. Um carro alegórico adentra o espaço cênico ladeado por um batalhão de policiais usando máscaras de gorilas, marchando em cadência e tudo arrastando ao redor. Máquina de guerra, o carro recupera não apenas a carnavalesca alegoria em seu sentido literal como, com muito apuro, materializa o choque existencial daquele episódio histórico.
Sem apelar para clichês, soluções convencionais ou supostos cânones de singeleza do teatro de rua, a nova encenação do Oi Nóis Aqui Traveiz subverte, simultaneamente, vários códigos estabelecidos, ratificando sua postura experimental, seu desembaraço em lidar com proposições pouco ortodoxas.
Última ironia, nesse espetáculo coalhado delas: seu subtítulo é “uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella”, reenviando para a crença mística sua metafísica trágica.
QUESTÃO DE CRÍTICA
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