sexta-feira, 12 de março de 2010
O ESPECTADOR EMANCIPADO
Artigo de Jacques Rancière
Tradução de Daniele Avila
Jacques Rancière, nascido em 1940 na Argélia, é professor emérito de estética e política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. É autor, entre outras obras, de Os nomes da História, Políticas da escrita, O desentendimento, A partilha do sensível e o Mestre ignorante.
A nota na revista ArtForum de março de 2007, onde este texto foi publicado, diz: "O espectador emancipado foi apresentado originalmente, em inglês, na abertura da Quinta Academia Internacional de Artes de Verão, em Frankfurt, no dia 20 de agosto de 2004. O texto se apresenta aqui de uma forma levemente revisada.
"Eu chamei esta conversa de "O espectador emancipado". A meu ver, um título é sempre um desafio. Ele apresenta o pressuposto de que uma expressão faz sentido, de que há uma conexão entre termos separados, o que também significa entre conceitos, problemas e teorias que à primeira vista não parecem ter qualquer relação direta entre si. De um modo, este título expressa o quanto fiquei perplexo quando Mårten Spångberg me convidou para dar a palestra que deve ser a "linha diretriz" desta escola. Ele disse que queria que eu iniciasse esta reflexão coletiva sobre "a condição do espectador" porque ele ficara impressionado com o meu livro O mestre ignorante [(Le Mâitre ignorant (1987)]. Eu comecei a me perguntar que conexão poderia haver entre a causa e o efeito. Esta é uma escola que reúne pessoas envolvidas no mundo da arte, do teatro e da performance para pensar a questão da condição do espectador hoje em dia. O mestre ignorante foi uma reflexão sobre a teoria excêntrica e o destino estranho de Joseph Jacotot, um professor francês que, no início do século XIX, agitou o mundo acadêmico ao afirmar que uma pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ela mesma não conhecia, proclamando a igualdade de inteligências e exigindo a emancipação intelectual no lugar da sabedoria recebida no que diz respeito à educação das classes mais baixas. Sua teoria caiu no esquecimento em meados do século XIX. Achei necessário reavivá-la nos anos 1980 para instigar o debate sobre a educação e suas balizas políticas. Mas que uso pode ser feito, no diálogo artístico contemporâneo, de um homem cujo universo artístico poderia ser resumido a nomes como Demóstenes, Racine e Poussin?
Pensando bem, me ocorreu que a própria distância, a falta de qualquer relação óbvia entre a teoria de Jacotot e a questão da condição do espectador hoje em dia pode ser promissora. Ela poderia proporcionar uma oportunidade para estabelecer uma distância radical entre o que se pode pensar e os pressupostos teóricos e políticos que ainda sustentam, mesmo sob um disfarce pós-moderno, a maior parte das discussões sobre teatro, espetáculo e a condição do espectador. Eu fiquei com a impressão que de fato era possível que esta relação fizesse sentido, contanto que tentássemos reconstituir a rede de pressupostos que colocam a questão da condição do espectador numa interseção estratégica na discussão da relação entre arte e política e tentássemos esboçar o principal padrão de pensamento que por muito tempo emoldurou as questões políticas em torno do teatro e do espetáculo (e eu uso estes termos aqui num sentido bem generalizado - para incluir a dança, a performance e todos os tipos de espetáculos desempenhados por corpos atuantes diante de um público coletivo).
Os numerosos debates e polêmicas que têm levantado a questão sobre o teatro ao longo da nossa história podem ter suas origens em uma contradição muito simples. Vamos chamá-la de paradoxo do espectador, um paradoxo que pode se provar mais crucial do que o famoso paradoxo do ator e que pode ser resumido nos termos mais simples. Não existe teatro sem espectadores (mesmo que seja apenas um, único e escondido, como na representação ficcional de Le fils naturel (1757) feita por Diderot). Mas a condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da possibilidade de agir.
A partir deste diagnóstico é possível tirar duas conclusões opostas. A primeira é que o teatro em geral é uma coisa ruim, que ele é o palco da ilusão e da passividade, que deve ser posto de lado em favor daquilo que ele proíbe: conhecimento e ação - a ação de conhecer e a ação conduzida pelo conhecimento. Platão chegou a esta conclusão há muito tempo: o teatro é o lugar em que pessoas ignorantes são convidadas para assistir pessoas que sofrem. O que acontece no palco é um pathos, a manifestação de uma doença, a doença do desejo e da dor, que não é nada além da autodivisão do sujeito causada pela falta de conhecimento. A "ação" do teatro não é nada além da transmissão dessa doença através de outra doença, a doença da visão empírica que olha para as sombras. O teatro é a transmissão da ignorância que torna as pessoas doentes através do meio da ignorância que é a ilusão de ótica. Portanto, uma boa comunidade é aquela que não permite a mediação do teatro, uma comunidade cujas virtudes coletivas são diretamente incorporadas nas atitudes vivas dos seus participantes.
Esta parece ser a conclusão mais lógica para o problema. Nós sabemos, no entanto, que esta não é a conclusão a que se tem chegado com maior freqüência. A mais comum é a seguinte: o teatro envolve a questão da condição do espectador e a condição do espectador é uma coisa ruim. Portanto, precisamos de um novo teatro, um teatro sem a condição do espectador. Precisamos de um teatro em que a relação ótica - implícita no termo theatron - esteja subordinada a outra relação, implícita no termo drama. Drama significa ação. O teatro é o lugar no qual uma ação é realmente desempenhada por corpos vivos diante de corpos vivos. Estes últimos podem ter abdicado do seu poder, mas esse poder é recuperado por aqueles outros na performance, na inteligência que esta performance constrói, na energia que ela transmite. O verdadeiro sentido do teatro deve ser atribuído a este poder que atua. O teatro deve ser trazido de volta à sua verdadeira essência, que é o contrário daquilo que é normalmente conhecido como teatro. O que se deve buscar é um teatro sem espectadores, um teatro onde os espectadores vão deixar esta condição, onde vão aprender coisas em vez de ser capturados por imagens, onde vão se tornar participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores passivos.
Esta virada foi compreendida de duas formas, em princípio antagônicas, apesar de freqüentemente misturadas na prática teatral e na sua legitimação. Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro.
Nós reconhecemos estas duas atitudes paradigmáticas sintetizadas pelo teatro épico de Brecht e pelo teatro da crueldade de Artaud. Por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por outro, deve perder toda distância. Por um lado, deve mudar o seu modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve abandonar a própria posição de observador. O projeto de reformar o teatro oscilou incessantemente entre estes dois pólos de questionamento distante e incorporação vital. Isto significa que os pressupostos que sustentam a busca por um novo teatro são os mesmos que sustentaram a rejeição do teatro. Os reformadores do teatro mantiveram, de fato, os termos da polêmica de Platão, rearrumando-os ao tomar emprestada do platonismo uma noção alternativa de teatro. Platão estabeleceu uma oposição entre uma comunidade poética e democrática do teatro e uma "verdadeira" comunidade: uma comunidade coreográfica na qual ninguém permanece como espectador imóvel, na qual todos se movem de acordo com um ritmo comunitário determinado por uma proporção matemática.
Os reformadores do teatro reapresentaram a oposição platônica entre choreia e theater como uma oposição entre a essência viva e verdadeira do teatro e o simulacro do "espetáculo". Assim o teatro se tornou um lugar onde a condição passiva do espectador teve que se transformar no seu oposto - o corpo vivo de uma comunidade que desempenha o papel do seu próprio princípio. Lemos na carta de intenções desta escola: "O teatro permanece como o único lugar de confronto direto do público com ele mesmo enquanto coletivo." Podemos dar um sentido restritivo a esta frase, que iria apenas contrastar o público coletivo do teatro com os visitantes individuais de uma exposição ou a simples coleção de indivíduos assistindo um filme. Mas é claro que esta frase significa muito mais. Ela significa que "teatro" continua sendo o nome para uma idéia de comunidade como um corpo vivo. Ele transmite a idéia de comunidade como uma presença de si mesma em oposição à distância da representação.
Desde o advento do romantismo alemão, o conceito de teatro tem sido associado à idéia de comunidade viva. O teatro apareceu como uma forma da constituição estética - no sentido da constituição sensorial - da comunidade: a comunidade como um meio de ocupar o tempo e o espaço, como um conjunto de gestos vivos e atitudes vivas que estão acima de qualquer forma ou instituição políticas; a comunidade como um corpo performático e não como um aparato de formas e regras. Deste modo, o teatro foi associado à noção romântica de revolução estética: a idéia de uma revolução que não mudaria apenas as leis e instituições, mas transformaria as formas sensoriais da experiência humana. A reforma do teatro significou, deste modo, a restauração da sua autenticidade como uma assembléia ou uma cerimônia da comunidade. O teatro é uma assembléia onde as pessoas adquirem consciência da sua condição e discutem os seus próprios interesses, diria Brecht depois de Piscator. O teatro é uma cerimônia onde se dá à comunidade a posse das suas próprias energias, afirmaria Artaud. Se o teatro é defendido como o equivalente da verdadeira comunidade, como o corpo vivo da comunidade em oposição à ilusão da mimesis, não é de se surpreender que a tentativa de restaurar o teatro à sua verdadeira essência tenha tido como pano de fundo teórico a crítica do espetáculo.
Qual é a essência do espetáculo na teoria de Guy Debord? É a externalidade. O espetáculo é o reino da visão. Visão significa externalidade. Agora, externalidade significa a desapropriação do próprio ser de uma pessoa. "Quanto mais um homem contempla, menos ele é", diz Debord. Isto pode soar antiplatônico. É claro que a principal fonte para a crítica do espetáculo é a crítica da religião de Feuerbach. É o que sustenta aquela crítica - a saber, a idéia romântica da verdade como inseparabilidade. Mas esta própria idéia se mantém de acordo com o descrédito platônico quanto à imagem mimética. A contemplação que Debord denuncia é a contemplação teatral ou mimética, a contemplação do sofrimento provocado pela divisão. "A separação é o alfa e o ômega do espetáculo", escreve. Aquilo que o homem contempla neste esquema é a atividade que lhe foi roubada; é a sua própria essência que lhe foi arrancada, que se tornou alheia, hostil a ele, que consente com um mundo coletivo cuja realidade não é nada além da desapropriação mesma do homem.
Através desta perspectiva, não há contradição entre a busca por um teatro que pode dar-se conta de sua própria essência e a crítica do espetáculo. O "bom" teatro é postulado como um teatro que dispõe de sua realidade distinta com o objetivo único de suprimi-la, para transformar a forma teatral em uma forma de vida da comunidade. O paradoxo do espectador é parte de uma disposição intelectual que é, mesmo em nome do teatro, compatível com a rejeição platônica do teatro. Esta estrutura está construída em torno de algumas idéias essenciais sobre as quais devemos nos questionar. De fato, devemos questionar o próprio fundamento no qual estas idéias estão baseadas. Estou falando de toda uma gama de relações, firmando-me em equivalências e oposições chaves: a equivalência entre teatro e comunidade, entre o ato de ver e a passividade, entre externalidade e separação, mediação e simulacro; a oposição entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, consciência de si e alienação.
Este conjunto de equivalências e oposições endossa uma dramaturgia muito complicada de culpa e redenção. O teatro é acusado de fazer com que seus espectadores sejam passivos, contrariando a sua própria essência, o que consiste, segundo se alega, na auto-atividade da comunidade. Como conseqüência, ele se propõe a tarefa de reverter seu próprio efeito e compensar sua própria culpa devolvendo aos espectadores sua autoconsciência e auto-atividade. O palco do teatro e a cena teatral tornam-se então a mediação evanescente entre o mal do espetáculo e a virtude do teatro verdadeiro. Eles apresentam, para uma platéia coletiva, espetáculos que pretendem ensinar aos espectadores como eles podem deixar de ser espectadores para que se tornem atores de uma atividade coletiva. Ou, de acordo com o paradigma brechtiano, a mediação teatral torna a platéia atenta à situação social em que o próprio teatro se encontra, dando a deixa para a platéia agir conseqüentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz com que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais sentados diante de um espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados para o círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva. Em ambos os casos, o teatro é uma mediação que se auto-suprime.
Este é o ponto em que as descrições e proposições da emancipação intelectual entram no quadro e nos ajudam a remoldurá-lo. Obviamente, esta idéia de uma mediação que se auto-suprime é muito conhecida entre nós. Ela é precisamente o processo que deve acontecer na relação pedagógica. No processo pedagógico, o papel do professor é colocado como o ato de suprimir a distância entre a sua sabedoria e a ignorância do ignorante. Suas lições e exercícios visam diminuir continuamente a lacuna entre conhecimento e ignorância. Infelizmente, para diminuir a lacuna, ele deve seguir renovando-a sempre. Para substituir a ignorância pelo conhecimento adequado, ele deve se manter sempre um passo à frente do aluno ignorante que está perdendo sua ignorância. A razão para isto é simples: no esquema pedagógico, o ignorante não é apenas aquele que não conhece aquilo que ele não conhece; mas também aquele que ignora como conhecer. O mestre não é apenas aquele que sabe precisamente o que permanece desconhecido para o ignorante; ele também sabe como fazer com que isto seja conhecível, a tal hora e em tal lugar, de acordo com tal protocolo. Por um lado, a pedagogia é apresentada como um processo de transmissão objetiva: um pouco de conhecimento depois de mais um pouco de conhecimento, uma palavra depois da outra, uma regra ou teorema depois do outro. Este conhecimento deve ser transmitido diretamente da mente do mestre ou da página do livro para a mente do aluno. Mas esta transmissão igual está baseada numa relação de desigualdade. Apenas o mestre conhece o modo certo, o tempo certo e o lugar certo para esta transmissão "igual", porque ele conhece algo que o ignorante jamais conhecerá - a não ser que ele mesmo se torne um mestre - algo mais importante que o conhecimento transmitido. Ele conhece a distância exata entre ignorância e conhecimento. Esta distância pedagógica entre uma determinada ignorância e um determinado conhecimento é, na verdade, uma metáfora. É uma metáfora de uma lacuna radical entre o caminho do aluno ignorante e o caminho do mestre, a metáfora de uma lacuna radical entre duas inteligências.
O mestre não pode ignorar que o aluno dito ignorante que está sentado à sua frente na verdade conhece muitas coisas que ele aprendeu sozinho, olhando e ouvindo o mundo à sua volta, adivinhando os significados do que ele via e ouvia, repetindo o que ele ouviu e aprendeu ao acaso, comparando o que ele descobre com o que ele já sabe, e assim por diante. O mestre não pode ignorar que o aluno ignorante adquiriu, através destes mesmos meios, o aprendizado que é a condição prévia para todos os outros: o aprendizado da sua língua materna. Mas, para o mestre, este é apenas o conhecimento do ignorante, o conhecimento da criancinha que olha e escuta coisas aleatoriamente, compara e palpita ao acaso e repete por hábito, sem entender a razão dos efeitos que ele observa e reproduz. O papel do mestre é romper com este processo tateante de tentativa e erro. É ensinar ao aluno o conhecimento do conhecível, ao seu próprio modo - o modo do método progressivo, que dispensa todo tatear e todo acaso, explicando itens dentro de uma ordem, do mais simples ao mais complexo, de acordo com o que o aluno é capaz de entender, levando em consideração sua idade ou sua formação social e suas expectativas sociais.
O conhecimento fundamental que o mestre possui é o "conhecimento da ignorância". É o pressuposto de uma lacuna radical entre duas formas de inteligência. Este também é o conhecimento fundamental que ele transmite ao aluno: o conhecimento de que as coisas devem ser explicadas a ele para que ele entenda, o conhecimento de que ele não consegue aprender sozinho. É o conhecimento da sua incapacidade. Deste modo, a instrução progressiva é a verificação sem fim do seu ponto de partida: a desigualdade. Esta verificação sem fim da desigualdade é o que Jacotot chama de processo de embrutecimento. O oposto do embrutecimento é a emancipação. Emancipação é o processo de verificação da igualdade de inteligência. A igualdade de inteligência não é a igualdade de todas as manifestações de inteligência. É a igualdade em todas as suas manifestações. Isto significa que não há lacuna entre duas formas de inteligência. O animal humano aprende tudo do mesmo modo que aprendeu a sua língua materna, como se aventurou pelas florestas das coisas e signos que o rodeiam para assumir seu lugar entre seus companheiros humanos - observando, comparando uma coisa com a outra, um signo com um fato, um signo com outro signo, e repetindo as experiências que ele encontrou primeiramente ao acaso. Se a pessoa "ignorante" que não sabe ler só sabe uma coisa de cor, mesmo que seja uma simples oração, ela pode comparar este conhecimento com algo que ela ainda ignora: as palavras da mesma oração escritas num papel. Ela pode aprender, signo por signo, a semelhança daquilo que ela desconhece com aquilo que ela conhece. Ela pode fazer isso se, a cada passo, observar o que está à sua frente, dizer o que viu, verificar o que lhe disseram. Entre a pessoa ignorante e o cientista que constrói hipóteses, é sempre a mesma inteligência que está trabalhando: uma inteligência que cria formas e faz comparações para comunicar suas aventuras intelectuais e para entender o que outra inteligência está tentando comunicar-lhe de volta.
Este trabalho poético de tradução é a primeira condição para qualquer aprendizado. A emancipação intelectual, como concebida por Jacotot, significa a atenção e a declaração daquele poder igual de tradução e contra-tradução. A emancipação traz uma idéia de distância oposta àquela embrutecedora. Animais falantes são animais distantes que tentam se comunicar através da floresta de signos. É este senso de distância que o "mestre ignorante" - o mestre que ignora a desigualdade - está ensinando. A distância não é um mal que deve ser abolido. É a condição normal da comunicação. Não é uma lacuna que demanda um especialista na arte de suprimi-la. A distância que a pessoa "ignorante" precisa atravessar não é a lacuna entre sua ignorância e o conhecimento do mestre; é a distância entre o que ela já conhece e o que ela ainda não conhece, mas pode aprender pelo mesmo processo. Para ajudar seu aluno a atravessar esta distância, o "mestre ignorante" não precisa ser ignorante. Ele só precisa dissociar seu conhecimento do seu domínio. Ele não ensina o conhecimento dele aos alunos. Ele inspira estes alunos a que se aventurem pela floresta, digam o que estão vendo, digam o que eles pensam sobre o que já viram, verifiquem isto e assim por diante. O que ele ignora é a lacuna entre duas inteligências. É a conexão entre o conhecimento do conhecível e a ignorância do ignorante. Qualquer distância é uma questão de acaso. Cada ato intelectual entrelaça um fio casual entre uma forma de ignorância e uma forma de conhecimento. Nenhum tipo de hierarquia social pode se firmar neste senso de distância.
Qual é a relevância desta história quanto à questão do espectador? Os dramaturgos de hoje em dia não querem explicar à sua platéia a verdade a respeito das relações sociais e os melhores meios para acabar com a dominação. Mas não é suficiente que se percam as ilusões. Pelo contrário, a perda das ilusões muitas vezes leva o dramaturgo ou os atores a aumentar a pressão sobre o espectador: talvez ele venha a saber o que deve ser feito, se ele mudar a partir do espetáculo, se ele se destacar da sua atitude passiva e se a cena fizer dele um participante ativo no mundo público. Este é o primeiro ponto que os reformadores do teatro compartilham com os pedagogos do embrutecimento: a idéia da lacuna entre duas posições. Mesmo quando o dramaturgo ou o ator não sabe o que ele quer que o espectador faça, pelo menos ele sabe que o espectador tem que fazer alguma coisa: trocar a passividade pela atividade.
Mas por que não virar as coisas ao contrário? Por que não pensar, neste caso também, que é exatamente este esforço para suprimir a distância que constitui a própria distância? Por que identificar o fato de uma pessoa estar sentada, imóvel, com inatividade, se não pela pressuposição de uma lacuna radical entre atividade e inatividade? Por que identificar "olhar" com "passividade", se não pela pressuposição de que olhar significa olhar para uma imagem ou para uma aparência e isso significa estar separado da realidade que está sempre atrás da imagem? Por que identificar o ato de ouvir com ser passivo, se não pela pressuposição de que agir é o oposto de falar, etc.? Todas estas oposições - olhar/saber; olhar/agir; aparência/realidade; atividade/passividade - são muito mais que oposições lógicas. Elas são o que eu chamo de partilha do sensível, uma distribuição de lugares e de capacidades ou incapacidades vinculadas a estes lugares. Em outros termos, são alegorias da desigualdade. É por isso que você pode mudar os valores dados para cada posição sem mudar o significado das próprias oposições. Por exemplo, você pode trocar a posição do superior e do inferior. O espectador é geralmente desmerecido porque ele não faz nada, enquanto os atores no palco - ou os operários lá fora - fazem alguma coisa com seus corpos. Mas é fácil inverter a questão afirmando que aqueles que agem, aqueles que trabalham com seus corpos, são obviamente inferiores àqueles que são capazes de olhar - isto é, aqueles que conseguem contemplar idéias, prever o futuro, ou ter uma visão global do mundo. As posições podem ser trocadas, mas a estrutura continua a mesma. O que conta, na verdade, é apenas a afirmação da oposição entre duas categorias: existe uma população que não pode fazer o que a outra população faz. Existe capacidade de um lado e incapacidade de outro.
A emancipação parte do princípio oposto, o princípio da igualdade. Ela começa quando dispensamos a oposição entre olhar e agir e entendemos que a distribuição do próprio visível faz parte da configuração de dominação e sujeição. Ela começa quando nos damos conta de que olhar também é uma ação que confirma ou modifica tal distribuição, e que "interpretar o mundo" já é uma forma de transformá-lo, de reconfigurá-lo. O espectador é ativo, assim como o aluno ou o cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz o seu poema com o poema que é feito diante dele. Ele participa do espetáculo se for capaz de contar a sua própria história a respeito da história que está diante dele. Ou se for capaz de desfazer o espetáculo - por exemplo, negar a energia corporal que deve transmitir o aqui e agora e transformá-la em mera imagem, ao conectá-la com algo que leu num livro ou sonhou, viveu ou imaginou. Estes são observadores e intérpretes distantes daquilo que se apresenta diante deles. Eles prestam atenção ao espetáculo na medida da sua distância.
Este é o segundo ponto-chave: os espectadores vêem, sentem e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o poeta o fez, como os atores, dançarinos ou performers o fizeram. O dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem este sentimento, entendessem esta lição a partir do que eles vêem, e que partam para esta ação em conseqüência do que viram, sentiram ou entenderam. Ele parte do mesmo pressuposto que o mestre embrutecedor: o pressuposto de uma transmissão igual, não-distorcida. O mestre pressupõe que aquilo que o aluno aprende é precisamente o que ele ensina. Esta é a noção de transmissão do mestre: existe algo de um lado, em uma mente ou em um corpo - um conhecimento, uma capacidade, uma energia - que deve ser transferido para o outro lado, para outro corpo ou mente. A pressuposição é que o processo de aprendizado não é simplesmente o efeito de sua causa - ensinar - mas a transmissão mesma da causa: o que o aluno estuda é o conhecimento do mestre. Esta identidade entre causa e efeito é o princípio do embrutecimento. Em contrapartida, o princípio da emancipação é a dissociação entre causa e efeito. O paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre.
O dramaturgo e o ator não querem "ensinar" nada. De fato, eles estão mais que cautelosos hoje em dia quanto a usar o palco como um meio de ensino. Eles apenas querem proporcionar um estado de atenção ou uma força de sentimento ou ação. Mas eles ainda supõem que aquilo que vai ser sentido ou entendido será o que eles colocaram no próprio roteiro ou performance. Eles pressupõem a igualdade - ou seja, a homogeneidade - entre causa e efeito. Como sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigualdade. Ela se baseia no pressuposto de que há um conhecimento adequado e uma prática adequada no que diz respeito à "distância" e às formas de suprimi-la. Agora, a distância toma duas formas. Há a distância entre o ator e o espectador. Mas há também a distância inerente à própria performance, visto que ela é um "espetáculo" mediático que se encontra entre a idéia do artista e o sentimento ou a interpretação do espectador. Este espetáculo é um terceiro termo, a que os outros dois podem se referir, mas que impede qualquer forma de transmissão "igual" ou "não-distorcida". É uma mediação entre eles e esta mediação de um terceiro termo é crucial no processo de emancipação intelectual. Para evitar o embrutecimento é preciso que exista algo entre o mestre e o aluno. A mesma coisa que os conecta deve também separá-los. Jacotot colocou o livro como o algo que fica no meio. O livro é a coisa material, exterior tanto ao mestre quanto ao aluno, através do qual é possível verificar o que o aluno viu, o que ele disse a respeito, o que ele pensa sobre o que disse.
Isto significa que o paradigma da emancipação intelectual é nitidamente oposto à outra idéia de emancipação na qual a reforma do teatro tem sido freqüentemente baseada - a idéia de emancipação como a reapropriação de um eu que fora perdido num processo de separação. A crítica Debordiana do espetáculo ainda se baseia no pensamento Feuerbachiano da representação como alienação do eu: o ser humano se separa da sua própria essência ao forjar um mundo celestial ao qual o mundo real dos homens está submetido. Do mesmo modo, a essência da atividade humana é distanciada, alienada de nós na exterioridade do espetáculo. A mediação do "terceiro termo" aparece então como a instância da separação, expropriação e traição. Uma idéia de teatro firmado na idéia do espetáculo concebe a externalidade do palco como um tipo de estado transitório que tem que ser abolido. A supressão desta exterioridade se torna, assim, o telos da performance. Este programa demanda que os espectadores estejam no palco e os atores na platéia. Ele demanda que a própria diferença entre os dois espaços seja abolida, que a performance aconteça em qualquer lugar que não seja um teatro. Certamente, muitos avanços da cena teatral resultaram desta derrubada da distribuição tradicional de lugares (no sentido dos locais e dos papéis). Mas a "redistribuição" de lugares é uma coisa; a demanda de que o teatro alcance, como sua essência, a reunião de uma comunidade una é outra. A primeira provoca a invenção de novas formas de aventura intelectual; a segunda provoca uma nova forma de distribuição platônica dos corpos em seus próprios lugares - ou seja, em seu lugar "comum".
Esse pressuposto contra a mediação está conectado a um terceiro, o pressuposto de que a essência do teatro é a essência da comunidade. O espectador tem que se redimir quando deixa de ser um indivíduo, quando é reintegrado no status de membro de uma comunidade, quando ele é arrebatado no fluxo da energia coletiva ou levado à posição de cidadão que age enquanto membro do coletivo. Quanto menos o dramaturgo souber o que os espectadores devem fazer enquanto coletivo, mais ele sabe que eles devem se tornar um coletivo, que eles devem transformar sua mera aglomeração na comunidade que eles virtualmente são. Já é tempo, eu acho, de questionar a idéia do teatro como um lugar especificamente comunitário. Espera-se que ele seja tal lugar porque, no palco, corpos vivos e reais atuam para pessoas que estão fisicamente presentes e juntas no mesmo lugar. Desta forma, espera-se que ele proporcione uma sensação única de comunidade, radicalmente distinta da situação do indivíduo assistindo televisão, ou das pessoas que vão ao cinema, que se sentam diante de imagens desencarnadas, projetadas. Por incrível que pareça, o amplo uso de imagens de todos os tipos de meios na cena teatral não colocou este pressuposto em questão. As imagens podem substituir os corpos vivos na cena, mas enquanto os espectadores estiverem unidos ali, a essência viva e comunitária do teatro parece estar a salvo. Assim, parece impossível escapar da questão: o que acontece especificamente entre espectadores num teatro que não acontece em outro lugar? Existe algo mais interativo, mais comunitário, que acontece entre eles do que entre indivíduos que assistem o mesmo programa na TV ao mesmo tempo?
Acho que esse "algo" não é nada além do pressuposto de que o teatro é comunitário em si e por si mesmo. A pressuposição do que o "teatro" significa sempre corre na frente da cena e prediz seus efeitos reais. Mas, num teatro, ou diante de um espetáculo, assim como num museu, numa escola, ou na rua, existem apenas indivíduos, abrindo seu próprio caminho através da floresta de palavras e coisas que se colocam diante deles ou em volta deles. O poder coletivo comum a estes espectadores não é o status de membro de um corpo coletivo. E também não é um tipo peculiar de interatividade. É o poder de traduzir do seu próprio modo aquilo que eles estão vendo. É o poder de conectar o que vêem com a aventura intelectual que faz com que qualquer um seja parecido com qualquer outro, desde que o caminho dele ou dela não se pareça com o de mais ninguém. O poder comum é o poder da igualdade de inteligências. Este poder une os indivíduos na mesma medida em que os mantém separados uns dos outros; é o poder que cada um de nós possui na mesma proporção para abrirmos nosso próprio caminho no mundo. O que tem que ser colocado à prova pelas nossas performances - seja ensinar ou atuar, falar, escrever, fazer arte, etc. - não é a capacidade de agregação de um coletivo, mas a capacidade do anônimo, a capacidade que faz qualquer um igual a todo mundo. Esta capacidade atravessa distâncias imprevisíveis e irredutíveis. Ela atravessa um jogo imprevisível e irredutível de associações e dissociações.
Associar e dissociar em vez de ser o meio privilegiado que transmite o conhecimento ou a energia que torna as pessoas ativas - isto sim poderia ser o princípio de uma "emancipação do espectador", o que significa a emancipação de qualquer um de nós como espectador. A condição do espectador não é uma passividade que deve ser transformada em atividade. É nossa situação normal. Nós aprendemos e ensinamos, atuamos e sabemos, como espectadores que ligam o que vêem com o que já viram e relataram, fizeram e sonharam. Não existe meio privilegiado, assim como não existe um ponto de partida privilegiado. Em todos os lugares há pontos de partida e pontos de virada a partir dos quais aprendemos coisas novas, se dispensarmos primeiramente o pressuposto da distância, depois, o da distribuição de papéis e, em terceiro, o das fronteiras entre os territórios. Nós não precisamos transformar espectadores em atores. Nós precisamos é reconhecer que cada espectador já é um ator em sua própria história e que cada ator é, por sua vez, espectador do mesmo tipo de história. Não precisamos transformar o ignorante em instruído ou, por mera vontade de subverter coisas, fazer do aluno ou da pessoa ignorante o mestre dos seus mestres.
Deixe-me fazer um pequeno desvio através da minha própria experiência política e acadêmica. Eu pertenço a uma geração que ficou suspensa entre duas perspectivas que competiam entre si: de acordo com a primeira, aqueles que possuíam a inteligência do sistema social deveriam passar este aprendizado para aqueles que sofriam sob este sistema, para que estes então passassem a agir para derrubá-lo. De acordo com a segunda, as pessoas supostamente instruídas eram na verdade ignorantes: como eles não sabiam nada sobre o que era exploração e rebelião, eles tinham que se tornar alunos dos trabalhadores ditos ignorantes. Portanto, eu primeiro tentei re-elaborar a teoria marxista para tornar suas armas teóricas disponíveis para um novo movimento revolucionário, antes de sair para aprender com aqueles que trabalhavam nas fábricas o que significava exploração e rebelião. Para mim, assim como para muitas outras pessoas da minha geração, nenhuma destas tentativas se provou muito bem-sucedida. Foi por isso que eu decidi investigar a história do movimento operário, para entender os motivos do desencontro contínuo entre os trabalhadores e os intelectuais que os visitavam, fosse para instruí-los ou para serem instruídos por eles. Eu tive sorte ao descobrir que esta relação não era uma questão de conhecimento de um lado e ignorância de outro, e tampouco era uma questão de saber versus agir ou de individualidade versus comunidade. Num dia de maio nos anos 1970, enquanto eu pesquisava a correspondência de um operário dos anos 1830 para determinar o que fora a condição e a consciência dos trabalhadores naquela época, eu descobri algo bem diferente: as aventuras de dois visitantes, também num dia de maio, mas uns cento e quarenta anos antes que eu me deparasse com suas cartas nos arquivos. Um dos dois correspondentes tinha acabado de entrar para a utópica comunidade dos Saint-simonistas e ele recontava a um amigo o seu cronograma diário na utopia: trabalho, exercícios, jogos, canto e estórias. Seu amigo respondeu escrevendo sobre uma viagem que ele tinha feito com outros dois trabalhadores para aproveitar o domingo de lazer. Mas não se tratava do lazer corriqueiro de domingo em que o trabalhador procura recuperar suas forças físicas e mentais para a próxima semana de trabalho. Era, na verdade, uma ruptura para outra forma de lazer - a de estetas que desfrutam de formas, luzes e sombras da natureza, a de filósofos que passam o tempo trocando hipóteses metafísicas numa pousada no campo e a de apóstolos que saem para comunicar sua fé aos companheiros ocasionais que encontram ao longo do caminho.
Aqueles trabalhadores que deveriam ter me fornecido informação sobre as condições de trabalho e formas de conscientização de classe nos anos 1830 me deram, no lugar disso, algo muito diferente: uma noção de semelhança ou igualdade. Eles também eram espectadores e visitantes, dentro da própria classe. Sua atividade como propagandistas não podia ser separada da sua "passividade" como meros transeuntes ou contempladores. A crônica do seu lazer provocou uma reconfiguração da relação mesma entre fazer, ver e dizer. Tornando-se "espectadores", eles subverteram a dada partilha do sensível, que diz que aqueles que trabalham não têm tempo livre para passear e olhar ao acaso, que os membros de um corpo coletivo não têm tempo de se tornar indivíduos. É isso que emancipação significa: o embaçamento da oposição entre aqueles que olham e aqueles que agem, entre os que são indivíduos e os que são membros de um corpo coletivo. O que aqueles dias proporcionaram aos nossos cronistas não foi conhecimento e energia para uma ação futura. Foi a reconfiguração hic et nunc da distribuição de Tempo e Espaço. A emancipação dos trabalhadores não dizia respeito a adquirir o conhecimento da sua condição. Tratava-se de configurar um tempo e um espaço que invalidasse a velha partilha do sensível que condenava os trabalhadores a não fazer nada com as suas noites além de restaurar suas forças para trabalhar no dia seguinte.
Compreender o sentido desta quebra no coração do tempo também significava colocar em jogo outro tipo de conhecimento, que não é baseado no pressuposto de qualquer diferença, mas no pressuposto da semelhança. Estes homens, também, eram intelectuais - como qualquer pessoa é. Eles eram visitantes e espectadores, assim como o pesquisador que, cento e quarenta anos depois, leria suas cartas numa biblioteca, assim como os que visitam a teoria marxista ou que estão aos portões de uma fábrica. Não existia distância a vencer entre intelectuais e trabalhadores, atores e espectadores; não existia distância entre duas populações, duas situações ou duas épocas. Pelo contrário, havia uma semelhança a ser reconhecida e colocada em jogo na própria produção de conhecimento. Colocar isso em jogo significava duas coisas. Primeiro, significava rejeitar as fronteiras entre disciplinas. Contar a história/estória dos dias e noites destes trabalhadores me forçou a embaçar os limites entre o campo da história "empírica" e o campo da filosofia "pura". A história que estes trabalhadores contaram era sobre o tempo, sobre a perda e a re-apropriação do tempo. Para mostrar o que isso significava, eu tive que colocar o relato deles em relação direta com o discurso teórico do filósofo que, muito tempo atrás na República, contou a mesma história ao explicar que, em uma comunidade bem organizada, todo mundo deve fazer uma coisa só, que ele ou ela deve cuidar da própria vida, e que os trabalhadores em todo caso não tinham tempo para gastar em nenhum outro lugar que não fosse o próprio local de trabalho ou para fazer qualquer outra coisa que não fosse o trabalho que se encaixava na (in)capacidade com a qual a natureza os dotara. A filosofia, então, não podia se apresentar como esfera do pensamento puro separada da esfera dos fatos empíricos. E também não era a interpretação teórica daqueles fatos. Não havia fatos nem interpretações. Havia duas formas de contar histórias.
Embaçar as fronteiras entre disciplinas teóricas também significava embaçar a hierarquia entre os níveis de discurso, entre a narração de uma história e sua explicação filosófica ou científica ou a verdade que está por trás ou por baixo dela. Não havia metadiscurso explicando a verdade de um discurso de nível inferior. O que tinha que ser feito era um trabalho de tradução, mostrando como histórias empíricas e discursos filosóficos se traduziam mutuamente. Produzir um novo conhecimento significava inventar a forma idiomática que tornaria a tradução possível. Eu tive que usar esse idioma para contar a minha própria aventura intelectual, sob o risco de que o idioma permanecesse "ilegível" para aqueles que queriam saber qual era a causa da história, seu verdadeiro significado, ou a lição que se poderia tirar dela e que desencadearia uma ação. Eu tive que produzir um discurso que fosse legível apenas para aqueles que fariam sua própria tradução a partir do ponto de vista da sua própria aventura.
Este desvio pessoal pode nos levar de volta ao cerne do nosso problema. Estas questões que envolvem o ultrapassamento de fronteiras e o embaçamento da distribuição de papéis são características que definem o teatro e a arte contemporânea hoje, quando todas as habilidades artísticas se desviam do próprio campo e trocam de lugar e de poderes com todas as outras. Temos peças sem palavras e dança com palavras; instalações e performances no lugar de obras "plásticas"; projeções de vídeos transformadas em ciclos de afrescos; fotografias transformadas em quadros vivos e pinturas históricas; escultura que se transforma em show mediático; etc. Agora, existem três formas de entender e praticar esta confusão de gêneros. Existe o renascimento da Gesamtkusntwerk, que se presume ser a apoteose da arte como uma forma de vida, mas que se prova, pelo contrário, como a apoteose de fortes egos artísticos ou um tipo de consumismo hiperativo, senão as duas coisas ao mesmo tempo. Há a idéia de uma "hibridização" dos meios da arte, que complementa a visão da nossa época como uma época de individualismo de massa que se expressa através de trocas incansáveis de papéis e identidades, realidade e virtualidade, vida e próteses mecânicas, e assim por diante. Do meu ponto de vista, esta segunda interpretação nos leva em última análise para o mesmo lugar da primeira - para outro tipo de consumismo hiperativo, outro tipo de embrutecimento, na medida em que efetua o atravessamento das fronteiras e a confusão de papéis meramente como uma forma de aumentar o poder do espetáculo sem questionar seus fundamentos.
A terceira forma - a melhor forma do meu ponto de vista - não tem como objetivo a amplificação do efeito, mas a transformação do próprio esquema causa/efeito, com a rejeição do conjunto de oposições que sustenta o processo de embrutecimento. Ela invalida a oposição entre atividade e passividade assim como o esquema de "transmissão igual" e a idéia comunitária de teatro que na verdade faz dele uma alegoria da desigualdade. O atravessamento das fronteiras e a confusão de papéis não deveriam levar a uma espécie de "hiperteatro", transformando a condição (passiva) do espectador em atividade ao transformar a representação em presença. Pelo contrário, o teatro deveria questionar o privilégio da presença viva e trazer o palco novamente para um nível de igualdade com o ato de contar uma história ou de escrever e ler um livro. Ele deveria ser a instituição de um novo estágio de igualdade, onde os diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros. Em todos estes espetáculos, na verdade, a questão deveria ser ligar o que uma pessoa sabe com o que ela não sabe; deveria se tratar, ao mesmo tempo, de atores que apresentam suas habilidades e espectadores que estão tentando encontrar o que aquelas habilidades poderiam produzir em um novo contexto, entre pessoas desconhecidas. Artistas, como pesquisadores, constroem o palco onde a manifestação e o efeito das suas habilidades se tornam dúbios na medida em que eles moldam a história de uma nova aventura em um novo idioma. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Ele demanda espectadores que são interpretadores ativos, que oferecem suas próprias traduções, que se apropriam da história para eles mesmos e que, finalmente, fazem a sua própria história a partir daquela. Uma comunidade emancipada é, na verdade, uma comunidade de contadores de história e tradutores.
Eu tenho consciência de que tudo isso deve soar como palavras, meras palavras. Mas eu não levaria isto como um insulto. Ouvimos tantos oradores passarem suas palavras adiante como algo mais que palavras, como senhas que nos habilitariam a entrar em uma nova vida. Vimos tantos espetáculos que se gabavam por não serem meros espetáculos, mas cerimoniais de uma comunidade. Mesmo hoje em dia, apesar do chamado ceticismo pós-moderno quanto a mudar nossa forma de viver, pode-se ver tantos shows que posam como mistérios religiosos que talvez não seja tão escandaloso ouvir, para variar, que palavras são apenas palavras. Romper com os fantasmas da Palavra transformada em carne e do espectador transformado em ator, saber que palavras são apenas palavras e que espetáculos são apenas espetáculos talvez nos ajude a entender melhor como palavras, histórias e espetáculos podem nos ajudar a mudar alguma coisa no mundo em que vivemos.
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quarta-feira, 10 de março de 2010
Reorientar o movimento
Pedro Alexandre Sanches
Um dos episódios mais emblemáticos da música brasileira sob a ditadura militar foi o da vaia fragorosa a Caetano Veloso em 1968, três meses antes da instauração do Ato Institucional nº 5, quando cantava É Proibido Proibir no III Festival Internacional da Canção (FIC). Fora de si, o músico entrou em confronto verbal com a plateia que o rejeitava e, em seguida, desafiou nervosamente o júri: “Me desclassifiquem junto com o Gil, tá entendendo?”
Hoje, poucos lembram qual era a canção de Gilberto Gil a que o parceiro se referia. Chamava-se Questão de Ordem, e fora desclassificada na eliminatória anterior. “Gil fundiu a cuca de vocês, hein?”, bradou Caetano no calor da hora. E Questão de Ordem não sobreviveu ao calor da hora. Costumamos nos lembrar do rififi de É Proibido Proibir tantas vezes quantas nos esquecemos da apresentação do roquinho tropicalista no qual Gil antecipava o exílio que viria: Daqui por diante fica decidido/ Quem ficar vigia/ Quem sair demora. Essa cena esquecida volta ao palco brasileiro 41 anos mais tarde, sob o olhar estrangeiro de Christopher Dunn, professor e pesquisador do departamento de espanhol e português da Tulane University e autor do ensaio Brutalidade Jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (273 págs., R$ 37). Publicado nos Estados Unidos em 2001, em meio a uma onda de valorização do movimento tropicalista por críticos e fãs norte-americanos e europeus, o livro demorou nove anos para ganhar edição brasileira, consumada por iniciativa da editora Unesp e mediação do encenador teatral Zé Celso Martinez Corrêa.
Dunn leva vantagem sobre intérpretes locais do fenômeno musical dos anos 1960 por abordá-lo a distância e alheio à perene relação de conflito entre os tropicalistas e seu Brasil natal. A leitura faz compreender que a Tropicália atraiu vaias à direita e à esquerda menos por seu conteúdo propriamente político que pela revolução comportamental que propunha. Se a postura sexualmente ambígua de Caetano motivou em parte a rebelião contra É Proibido Proibir, Dunn reconstrói a imagem de Gil amparado por uma túnica de motivos africanos, barba, bigode e cabelo black power e musicalidade próxima à do roqueiro negro Jimi Hendrix.
O autor transcreve trechos de um artigo-discurso que Gil enviou à época do exílio para O Pasquim com o propósito de recusar um prêmio que o Museu da Imagem e do Som carioca queria lhe outorgar, pelo samba Aquele Abraço (1969). “E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar’”, escreveu um Gil muito menos brando que aquele com que nos acostumamos mais tarde. “Eu não sei qual é o meu, e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo à mesa dos senhores brancos, e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso, talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia, onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho. As aves daqui não gorjeiam como as de lá, mas ainda gorjeiam.”
Segundo o registro de Dunn, o jornalista Nelson Motta (que décadas mais tarde evocaria o rancor racial como elemento da derrocada do ídolo black pré-tropicalista Wilson Simonal) foi um dos que se voltaram contra Questão de Ordem. “Gil derivou para uma linha mais africana, mais identificada com a moderna música negra internacional, mas não está sendo entendido nem pelo público nem por mim”, queixou-se o crítico em 1968, no jornal Última Hora.
“Minha leitura é especulativa, mas acho que a performance da africanidade e negritude de Gil incomodou boa parte do público”, afirma em português fluente o autor, numa entrevista por e-mail.
Seu interesse por esse aspecto tem relação com o fato de ele atuar no Programa de Estudos da África e Diáspora Africana da Tulane. Não chega a ser o fio condutor do livro, mas o componente racial, sempre escamoteado por aqui, vem se somar à afronta sexual-comportamental proposta por Caetano, Gal Costa e Mutantes, bem como ao intrincado xadrez político que indispôs os tropicalistas tanto com artistas de esquerda quanto com a ditadura de direita.
Norte-americano de ascendência irlandesa e alemã, Dunn diz que seu interesse pela música daqui foi despertado por um professor especialista em história brasileira. “Meu interesse pelo Brasil não é porque seja ‘exótico’ em relação aos Estados Unidos, mas porque é similar, comparável, e ao mesmo tempo diferente”, diz. “Como os Estados Unidos, o Brasil é um país social, étnica e culturalmente complexo e heterogêneo, com traços distintivos, devido a seu legado lusitano, africano e indígena. A cultura afro-brasileira é para mim especialmente impressionante na forma em que concilia a tradição (penso, por exemplo, em candomblé, capoeira, formas tradicionais de fazer música) com a modernidade globalizada.”
É eloquente que a Tropicália só tenha despertado o interesse nos norte-americanos mais de duas décadas após o nascimento e morte do movimento – diferentemente do que acontecera antes com a bossa nova, mais embranquecida e elitizada, e prontamente capturada por plateias primeiro-mundistas. “Ao longo de muitos anos, a música brasileira era ouvida no exterior como um grande desdobramento da bossa nova, que está longe da questão terceiro-mundista”, observa Dunn. “Essa situação muda um pouquinho com o surgimento dos blocos afro e a expansão internacional da capoeira, mas em geral o consumo de música brasileira no exterior não passa por aí. E muito menos no caso da Tropicália, que foi reconhecida tardiamente como mais um som interessante a ser citado como referência, e não como discurso político insurgente.”
A identificação tardia consolidou-se nos anos 1990, quando o músico David Byrne descobriu a obra de Tom Zé, um tropicalista iconoclasta que, por aqui mesmo, andava redondamente esquecido. A Tropicália almejou conduzir a música brasileira ao mercado de massas, e, ironicamente, foi o menos comercial de seus participantes quem inseriu a Tropicália no mercado dito “global”.
“A música de Tom Zé abriu nossos ouvidos para uma tradição experimental e vanguardista na música brasileira que tinha sido ignorada, salvo algumas exceções, como a música instrumental de Hermeto Pascoal”, diz o autor. “A coletânea dele (lançada pelo selo de Byrne) foi uma revelação para o público norte-americano e europeu, e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no exterior. Na época, tive várias conversas com pessoas que não sabiam nada da música brasileira, mas adoravam Tom Zé.”
Dunn coloca foco na dimensão política em Brutalidade Jardim, como quando procura defender o movimento, apenas parcialmente, de acusações de que operasse uma “modernização conservadora” no cenário local. “(José Ramos) Tinhorão interpretou a Tropicália simplesmente como a vanguarda cultural do regime militar”, menciona, afirmando discordar de tal leitura.
Detém-se, por exemplo, no gesto tropicalista pioneiro do filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, na cena em que o intelectual Paulo Martins tapa a boca do personagem que alegoriza o “povo” e esbraveja: “Você vê o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Vocês já pensaram Jerônimo no poder?” Dunn mostra como se tratava de uma (auto)crítica de Glauber ao paternalismo “nacionalista-participante” de esquerdistas mais ortodoxos (como Geraldo Vandré), desenvolvida e aprimorada em seguida pelos tropicalistas.
Curioso é testemunhar como Caetano ainda hoje ecoa aquele momento histórico, como na crítica recente a Luiz Inácio Lula da Silva (Jerônimo) em termos do tipo “analfabeto” e “grosseiro”. É como se Jerônimo houvesse ido ao poder e Paulo Martins cedesse, ainda hoje, ao cacoete de querer calar a boca de Jerônimo. É como se Caetano, jovem vilipendiado de 1968, cansasse por ora de nos tentar fazer entender por que seu corpo queria ficar Odara e agora se alinhasse, simultaneamente, aos paternalistas de esquerda e aos autoritários de direita que tanto combateu quatro décadas atrás.
“Não vejo a analogia, porque o insulto de Caetano é coerente com a posição antipopulista que ele sempre defendeu”, discorda Dunn. Mas, em seguida, ele cita uma possível perda de espaço e poder do artista-intelectual (“ou do ‘intelectual pop star’, para citar a autodenominação de Caetano”): “É uma figura que há muito deixou de ter relevância nos Estados Unidos, mas resistiu por mais uma geração no Brasil. Pode até indicar a decadência do intelectual público, seja artista ou não, na sociedade brasileira”.
Se aqui e ali o discurso de Dunn chega a soar cético quanto às conexões entre política da arte, seu próximo livro pode demonstrar que as coisas não são bem assim. Prepara, em parceria com o brasileiro Idelber Avelar, seu colega em Tulane, um livro de ensaios sobre cidadania na música brasileira. “Constatamos que algumas das músicas mais interessantes do ponto de vista de invenção formal também são ‘engajadas’ no sentido de abordar questões sociais e políticas com um olhar crítico. Quem vai dizer que a música de artistas como Tom Zé, Nação Zumbi, Nega Gizza, Racionais MC’s, Pedro Luís e A Parede, Titãs ou Bezerra da Silva é chata ou panfletária?”, pergunta, em permanente diálogo com as tradições e contradições dos antropófagos tropicalistas.
CARTA CAPITAL
05/03/2010
No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é
Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro concedida a Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogerio Duarte do Pateo, Uirá Felipe Garcia, 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA). A entrevista aparecerá em breve no Aconteceu, a grande publicação quinquenal coordenada pelo projeto Povos Indígenas no Brasil, o PIB-ISA.
Quem é Índio? O que define o pertencimento a uma comunidade indígena?
Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas.
A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura — era o final dos anos 1970 —, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse regime, bem entendido, era e é outra coisa).
Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as Comissões Pró-Índio e as Anaís; foi também nesse contexto que se formaram ou consolidaram organizações como o CTI e o PIB, o “Projeto Povos Indígenas do Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem, está na origem do ISA). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente em torno da questão de quem é índio — não para responder essa questão, mas para responder contra essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta, uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar, deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?” pergunta o personagem de um filme de Herzog. Justamente: como responder à resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade — como responder a esta resposta? A se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.
Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer “emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.
Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente — não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar lá — que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era uma luta conceitual: nosso problema era fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais índio”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia, justamente, é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios, “ainda que”... Ou justamente porque. Em suma, a idéia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou de “civilizado”.
Mas a filosofia da legislação brasileira era justamente essa: todos os índios “ainda” eram índios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar de sê-lo. Mesmo os que estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares de plumas, seus colares de contas, seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas, os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” — mesmo esses ainda eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda não eram não-índios. O objetivo da política indigenista de Estado era gerenciar (e por que não? acelerar) um movimento visto como inexorável (e por que não? desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé comum aos mais variados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que se “podia fazer” era garantir — isso para os mais bem-intencionados — que o “processo” não fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra, entendia-se que a almejada omelete nacional só poderia ser feita, bem, sabe-se como.
A luta contra o projeto de emancipação levou as pessoas que estavam do lado dos índios a se preocuparem com recenseamentos, levantamentos, com informação, com organização, comunicação e propaganda. Tratava-se, em suma, de tornar a questão visível. No fundo, não deixou de ser uma sorte os generais e coronéis da época terem tentado desindianizar uma porção de comunidades indígenas, pois isso, na verdade, terminou foi por reindianizá-las. A atabalhoada tentativa da ditadura de legiferar sobre a ontologia da indianidade “desinvisibilizou” os índios, que eram virtualmente inexistentes como atores políticos nas décadas de 60 e 70. Eles só apareciam, de vez em quando, em alguma uma reportagem colorida sobre o Xingu, geralmente como ilustração do admirável trabalho dos irmãos Villas-Boas (digo admirável sem nenhuma ironia; não deixava de ser bizarro, porém, o fato de que havia nessa época uma série de jornalistas especializados em embasbacar-se diante dos Villas-Boas e outros sertanistas). A grita suscitada com o projeto de emancipação resgatou a questão indígena do folclore de massa a que havia sido reduzida. Ela fez com que os próprios índios se dessem conta de que, se eles não tomassem cuidado, iam deixar de ser índios mesmo, e rapidinho. Graças a isso, então e enfim, os índios se tornaram muito mais visíveis como atores e agentes políticos no cenário nacional. Os primeiros líderes indígenas de expressão supra-local surgiram nesse contexto, como Mário Juruna e Aílton Krenak.
A questão de quem é ou não é índio reaparece agora, mas por outras razões. Algumas pessoas ligadas à questão indígena têm por vezes a impressão (ou pelo menos eu tenho a impressão de que elas têm a impressão) de que nós, índios e antropólogos, fomos um pouco vítimas de nosso próprio sucesso. Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as consequências jurídico-políticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face indígena de várias comunidades “camponesas” do país. Agora, ao contrário, “todo mundo quer ser índio” — dizemos, entre intrigados e orgulhosos; talvez mais intrigados que orgulhosos. Antigamente, os especialistas no “processo histórico” martelavam-nos os ouvidos com o dogma de que a “condição camponesa” (com opção de “proletarização”) era o devir histórico inexorável e portanto a verdade das sociedades indígenas, e que a descrição destas sociedades como entidades socioculturais autônomas supunha um “modelo naturalizado” e “a-histórico”. Mas eis que, pouco a pouco, os índios começam a reivindicar e terminam por obter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado permanente dentro da chamada “comunhão nacional”; eis que eles implementam ambiciosos projetos de retradicionalização marcados por um autonomismo “culturalista” que, por instrumentalista e etnicizante, não é menos primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas comunidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente “camponesas” do país se põem a reassumir sua condição indígena, em um processo de transfiguração étnica que é o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por Darcy Ribeiro no célebre Os índios e a civilização, em profecia acreditada, com um retoque ou outro, pela imensa maioria dos antropólogos.
Com a constituição de 1988, o jogo terminou de virar completamente. De fato, houve uma inversão de 180 graus em relação ao projeto de emancipação. O propósito explícito deste projeto era emancipar indivíduos, mas seu verdadeiro objetivo, como se sabe, era o de “liberar” comunidades inteiras. Com a Constituição, consagrou-se o princípio de que as comunidades indígenas constituem-se em sujeitos coletivos de direitos igualmente coletivos. O “índio” deu lugar à “comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” – quem sabe), e assim o individual cedeu o passo ao relacional e ao transindividual, o que foi, desnecssário enfatizar, um passo gigantesco, mesmo que esse transindividual tenha precisado assumir a máscara do supra-individual para poder figurar na metafísica constitucional, a máscara da Comunidade como Super-Indivíduo. Mas de qualquer modo o individual não podia deixar de ceder ao relacional, uma vez que a referência indígena não é um atributo individual mas um movimento coletivo, e que a “identidade indígena” não é “relacional” apenas “em contraste” com identidades não-indígenas, mas relacional (logo, não é uma “identidade”), antes de mais nada, porque constitui coletivos transindividuais intra-referenciados e intra-diferenciados. Há indivíduos indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o inverso.
Pois bem. Foi a partir desse momento que acelerou-se a “emergência” de comunidades indígenas que estavam submersas por várias razões: porque tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias, línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz de servir de “população”, isto é, de sujeito (no sentido de súdito) do Estado. Como se sabe, as antigas missões que estão na origem de tantas cidades, vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil foram os lugares privilegiados dessa fabricação do componente indígena do “povo brasileiro”, ao sintetizar os célebres índios genéricos, os índios de aldeamento, catecúmenos do sacramento estatal da transsubstanciação étnica: a comunhão nacional... A Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional.
A partir daquele momento — que é ainda o momento em que estamos vivendo — e daquilo que ganhou um ímpeto irresistível a partir dele, a saber, a re-etnização progressiva do povo brasileiro, a questão “quem é índio?” deixou de se colocar em vista do fim mais ou menos inconfessável que o Estado se colocava, o de violentar os direitos das comunidades e das pessoas indígenas. Ela passou a ser um problema daqueles que se pensam do (e que pensam ao) lado dos índios, bem como um problema dos “próprios” índios.
Qual o problema hoje? Isto é, como aparece o problema hoje? Ele aparece como sendo o de evitar a banalização da idéia e do rótulo de “índio”. A preocupação é clara e simples: bem, se “todo mundo”ou “qualquer um” (qualquer coletivo) começar a se chamar de índio, isso pode vir a prejudicar os “próprios” índios. A condição de indígena, condição jurídica e ideológica, pode vir a “perder o sentido”. Esse é um medo inteiramente legítimo. Não compartilho dele, mas o acho inteiramente legítimo, natural, compreensível, como acho legítimo, natural etc. o medo de assombração. Enfim... O raciocínio é: se, de repente, nós tivermos que “reconhecer como tal” toda comunidade que se reivindica como indígena perante os distribuidores autorizados de identidade (o Estado), aí quem vai acabar se dando mal são os Yanomami, os Tucano, os Xavante, todos os “índios de verdade”, em suma. Poderá haver uma desvalorização da noção de índio, um barateamento dessa identidade. Se, antes, ser índio custava caro (para evocar um artigo pioneiro de Roberto DaMatta: “Quanto custa ser índio no Brasil?”), e custava caro, é claro, para quem o era, hoje ser índio estaria ficando barato demais. Agora é fácil ser índio; basta dizer... E daí ninguém, principalmente o Estado, vai acabar comprando essa.
Não acredito nisso. Muito mal comparando — e digo mal porque a comparação arrisca reavivar velhos e grotescos estereótipos —, pode-se dizer que ser ou virar índio é como aquilo que Lacan dizia sobre os loucos: não é louco quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante.
Aí entra a idéia do antropólogo como a pessoa que vai legitimar essa identidade
Pois é: que vai, justamente, garantir essa identidade. Só que não garante; só o índio é quem (se) garante. O papel dos antropólogos nessa questão é um tantinho confuso. A comunidade antropológica, por via de suas ABAs e entidades similares, desempenhou um papel fundamental na decisão de botar o pé na porta e impedir o projeto de emancipação, decisão tomada em conjunto com outros advogados da causa e, naturalmente, com os índios. Eu acho que esse momento, em 1978, foi um dos claros e raros momentos em que, de fato, os antropólogos fizeram uma diferença. Uma tremenda diferença. Não foi um antropólogo ou dois, como foi Darcy Ribeiro no tempo do Estatuto do Índio, ou os irmãos Vilas Boas – que por vezes foram chamados de antropólogos, durante a criação do Parque do Xingu –, mas os antropólogos “como um todo”, enquanto coletividade, que fizeram uma tremenda diferença nesse momento. E o mesmo se diga da mobilização em torno da Constituinte de 1988. Depois, minha impressão é que a coisa mudou um pouco. “Os antropólogos” deixou de ser um plural coletivo, e passou a um plural distributivo: “os antropólogos” são aquelas pessoas que fazem laudo, os peritos. Peritos em identidade. Alheia. Bem, nem todos.
Em todo o processo de juridificação da questão “quem é índio?”, isto é, de decidir como e onde aplicar os artigos da Constituição de 1988, a antropologia conseguiu, a meu ver com toda a justiça, este ganho político de se tornar um interlocutor legítimo do aparelho de estado, parte necessária nos processos jurídicos de garantia e de oficialização das demarcações de terra, entre outras coisas. Mas com isso o antropólogo (releve-se-me o masculino) passou também a ter uma atribuição que, a meu ver, é complicada (releve-se-me o eufemismo). Ele passou a ter o poder de discriminar quem é índio e quem não é índio, ou antes, a prerrogativa de pronunciar-se com autoridade sobre a matéria, de modo a instruir a instância que tem realmente tal poder de discriminação, o Poder Judiciário. Ainda que o antropólogo diga sempre ou quase sempre que fulano é índio, que aqueles caboclos da Pedra Preta são, de fato, índios, pouco importa. O problema é que o antropólogo está “em posição de” dizer quem não é índio, dizer que alguém não é índio. E pode fazê-lo.
Mas aí ele vai ter de mudar de profissão...
Muito provavelmente. E de cidade também. Mas de qualquer maneira, o fato de se sentir autorizado a responder já situou, de saída, o antropólogo em algum lugar entre o juiz (afinal, o perito é aquele que diz sim ou não, que constata-atesta que alguém é ou não é alguma coisa) e o advogado de defesa (aquele que diz, mesmo que não acredite muito nisso: “é sim, é índio; meu cliente é índio e vou prová-lo”). É como se existisse um promotor genérico que diz “o réu não é índio, sua pretensa identidade indígena é uma falsa identidade”; e você vem com o advogado de defesa que vai dizer “não, ele é índio sim, sua identidade é legítima e autêntica”.
Tudo ótimo, normal e democrático. Mas a questão continua colocada nos termos de sempre: continua uma questão de se dizer quem é o quê. É sem dúvida difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço jurídico-legal funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é carimbado pelos oficiais competentes não existe — não existe porque foi produzido fora das normas e padrões — não recebe selo de qualidade. O que não está nos autos etc. Lei é lei etc. E afinal de contas, é preciso administrar a nação; é preciso gerir a população, e o território. Como se diz.
Mas há quem diga que o papel do antropólogo não é, nunca foi e jamais deveria ser o de dizer quem é índio e quem não é índio. Que isso é coisa de inspetor da alfândega, de fiscal da identidade alheia. Esta é uma posição pessoal minha (e como seria outra coisa, afinal?), consequência da dificuldade que sinto de enunciar juízos do tipo “esses caras são índios” ou “esses caras não são índios”. O problema, para mim, é a legitimidade da pergunta. Não aceito essa pergunta como sendo uma pergunta antropológica. Ela não é uma pergunta antropológica, é uma pergunta jurídica. Oh não, ela é uma pergunta essencialmente, fundamentalmente, visceralmente política, obtemperarão meus argutos colegas. Mas é claro que é uma pergunta política, replicarei. E minha resposta política a ela é dizer que ela não é uma questão antropológica, mas uma questão jurídica, e de que é aqui que se distingue o antropólogo do jurista: no tipo de pergunta que eles têm respectivamente “o direito” de fazer, e portanto de responder.
Naturalmente que o antropólogo também pode responder, ou ajudar a responder, perguntas jurídicas, e que ele é por vezes compelido a se colocar imaginariamente (ou taticamente) na posição de Legislador, quando não na de Conselheiro do Príncipe. Ainda que... Bem, em algumas situações ele é obrigado mesmo a responder, por exemplo quando as perguntas são feita em relação ao povo junto a quem ele trabalha, às pessoas com as quais ele tem relações reais, os membros da comunidade ou comunidades das quais ele antropólogo é parte componente e interessada, mesmo que uma parte à parte. Mesmo que seja uma parte separada, que mora longe, ele é sempre parte da comunidade. Querendo ou não. Pode ser uma parte renegada, uma parte traidora, uma parte distante, uma parte longíqua, mas é parte. E enquanto tal, é claro que ele tem que responder às perguntas que o Estado lhe “propõe”, porque ele está lá para isso mesmo, para entrar na briga. Mas não devemos por isso imaginar que todas as questões com que o antropólogo se defronta sejam por isso questões antropológicas, questões que ele naturalmente pode e deve responder, deve aceitar responder e deve se responsabilizar por isso. Responsabilizar-se, isto é, responder pela resposta. Só que acho que ninguém tem o direito de dizer quem é ou quem não é índio, se não se diz, porque é, índio ele próprio. E é justamente por isso que o antropólogo só pode responder, se lhe perguntam se o povo ou comunidade de que ele escolheu ser parte é, de fato, indígena, pela afirmativa. Essa resposta afirmativa não responde à pergunta que lhe foi feita.
Em suma, para o antropólogo, índio é como freguês — sempre tem razão. O antropólogo não está lá para arbitrar se as pessoas que lhe hospedam e cuja vida ele escarafuncha têm ou não razão no que dizem. Ele está lá para entender como é que aquilo que elas estão dizendo se conecta com outras coisas que elas também dizem ou disseram, e assim por diante. Ao antropólogo não somente não cabe decidir o que é uma comunidade indígena, que tipo de coletivo pode ser chamado de comunidade indígena, como cabe, muito ao contrário, mostrar que esse tipo de problema é indecidível.
E a responsabilidade social diante dos não-índios?
Permitam-me incorrer em um exagero heurístico. Eu direi que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
Tem que provar que não é índio?
Sim; acho que o problema é “provar” quem não é índio no Brasil. Resposta política à resposta (isto é, à pergunta) política que se faz ao antropólogo. Entendo assim, para começar, que a questão de quem é ou quem não é índio não é uma questão de “cultura”, isto é, uma questão respondível mediante a inspeção dos conteúdos culturais da vida de um coletivo. Não estou negando, obviamente, que haja um fundo cultural ameríndio muito vivo e muito real; um fundo, ou por outra, uma forma, uma estrutura ou conjunto de estruturas (para usarmos uma palavra fora de moda) conceituais que remontam à América pré-colombiana. O que eu estou dizendo é que a relação com esse fundo cultural não é uma relação nem necessária nem suficiente para se definir o que é índio. Porque uma vez que se recusa a pergunta, o fundo cultural não pode mais servir para definir pertenças e inclusões em classes identitárias. Esse fundo cultural é um elemento da história do país, do continente, das três Américas. Os coletivos humanos contemporâneos espalhados por nosso continente se orientam de modos variados em relação a esse fundo; nenhum desses modos é redutível ao modo emanativo, pois um coletivo humano não é jamais a encarnação de uma cultura; não porque seja mais que isso, mas porque é outra coisa.
E assim eu inverto a questão. O problema é quem não é índio. (Essa afirmação se insere em uma teoria do minoritário que devo a outrem, e que não cabe expor aqui. Mas para bom entendedor, eis como posso afirmar que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.) Darcy Ribeiro, aliás – não sei se ele diz exatamente isso, não sou bom leitor dele –, insistiu sobre isso, sobre o fato de que o “povo brasileiro” é muito mais indígena do que se suspeita ou supõe. (Não estou com isso, desnecessário dizer, minimizando o aporte óbvio e gigantesco das populações africanas trazidas à força para cá.) O homem livre da ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio, o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do nordeste é um índio. Índio em que sentido? Ele é um índio genético, para começar, apesar disso não ter a menor importância.
Genético e genérico
A mesma coisa. Os pesquisadores da UFMG que fizeram um levantamento do aporte genético ameríndio na população nacional descobriram que ele é muito maior do que se imaginava. Coisa de 33%, creio. Afinal de contas, então, o fluxo gênico ameríndio continua a correr solto. Interessante, mas isso não tem a menor importância, exceto pelo que pode ajudar a esclarecer sobre a história “do Brasil”. Digo que os coletivos caiçaras, caboclos, camponeses e índios são índios (e não 33% índios) no sentido de que são o produto de uma história, uma história que é a história de um trabalho sistemático de destruição cultural, de sujeição política, de “exclusão social” (ou pior, de “inclusão social”), trabalho esse que é propriamente interminável. Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. E ainda quando o foram, quando foram reduzidas a seus componentes individuais, extraídos das relacões que os constituíam, como aconteceu com os escravos africanos, esses componentes reinventam uma cultura e um modo de vida — um mundo relacional que, por constrangido que tenha sido pelas condições adversas onde vicejou, jamais deixou de ser uma expressão da vida humana exatamente como qualquer outra. Não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afro-descendentes, ou quem quer que seja — pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam. Ou talvez seja uma coisa que só os brancos podem ser (pior para eles). A autenticidade é uma autêntica invenção da metafísica ocidental, ou mesmo mais que isso — ela é seu fundamento, entenda-se, é o conceito mesmo de fundamento, conceito arqui-metafísico. Só o fundamento é completamente autêntico; só o autêntico pode ser completamente fundamento. Pois o Autêntico é o avatar do Ser, uma das máscaras utilizada pelo Ser no exercício de suas funções monárquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos. Que diabo teriam os índios a ver com isso?
Há uns meses atrás, nós vimos aquela declaração catastrófica do Mércio que disse que o judiciário teria que resolver esse problema
Essa história é, digamos assim, muito instrutiva. O presidente da Funai de hoje está voltando a falar como falavam (como eram feitos falar por seus chefes) os presidentes da Funai de ontem. Só que agora não é mais porque tem muito índio que “não é mais índio”, mas porque tem muito branco que “nunca foi índio” querendo “virar índio”. Quando seria melhor dizer: tem muito branco, que nunca foi muito branco porque já foi índio, querendo virar índio de novo.
Mas isso é sentido como um escândalo, no fundo; é o mundo de cabeça para baixo e de trás para a frente. É como se não fosse possível — possível no sentido lógico, não apenas no sentido moral — querer virar índio, só se pode querer deixar de sê-lo. É como se querer virar índio fosse uma contradição em termos. De qualquer modo, já tem índio demais por aqui; e aliás, os índios têm terras demais. O Brasil ficaria melhor e maior com menos índios: só com os que existem hoje, por exemplo. Sejamos liberais: não é preciso matar ninguém; os índios que temos são bons; são mesmo necessários. Mas sobretudo, eles são suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer uma escala. Índio mesmo é só índio isolado; voltemos às famosas categorias, cuja intenção de marcar etapas temporais é evidente: isolado, contato intermitente, contato permanente e integrado. Onde vai passar o corte? Na cara de quem vai se fechar a porteira? Integrado já não é mais índio; fácil essa. E os de contato intermitente? Que frequência de intermitência faz de um intermitente um integrado? Dezesseis horas por dia? Bem, o índio isolado ninguém tem coragem de dizer que não é mais índio, sobretudo porque ele nem é índio ainda. Ele não sabe que é índio; não foi contatado pela Funai ou coisa do gênero. Ou seja, primeiro se tem que virar índio para depois se deixar de ser. Por que então não se pode querer virar de novo depois de ter deixado de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nem por isso insistindo menos em querer ser?
O Mércio está dizendo a mesma coisa que os governos da ditadura. Em essência, ele está dizendo que tem índio demais. Essa coisa de fechar a lista aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. Em um dado momento definiram arbitrariamente quem eram os índios. Só que lá, sendo aquele o país que é, os índios da lista vão ser índios para sempre. E não obstante, essa lista nunca fecha completamente. Não faz muito tempo que certas comunidades reivindicaram uma indianidade deixada de fora da lista, e outras continuam a fazê-lo.. Tome-se o célebre caso dos Lumbee. Coisa muito parecida com o que ocorre aqui.
Enfim, tenho a impressão de que é isso que o Mércio quer fazer. Uma lista, para poder dizer depois: a lista fechou. Uma lista para isso. Note-se o arbitrário quase burlesco de uma lista como essa. Por que parar agora e não no mês que vem? Por que não parou antes? Naturalmente, isso vai provocar uma corrida — acelerar uma corrida que já está acontecendo — para se registrar como índio. O correto seria publicar um edital. Abrir concorrência pública. Marcar prazo.
A declaração de Mércio Gomes — supondo-se que ele tenha dito o que se escreveu que ele disse; mas o povo inventa muito... — é completamente absurda. A Funai é (ou deveria ser) a representante, no sentido de defensora, das populações indígenas. Dali seria o último lugar de onde se poderia esperar ser emitido um juízo como esse. Como o presidente do chamado órgão tutelar (nem sei se a Funai “ainda é” isso) pode dizer tal coisa?
Bem, estou apenas fingindo surpresa — infelizmente. A declaração do Mércio foi a de um estadista. Um pequeno estadista, naturalmente. Com efeito e a rigor, definir quem é ou não é índio não é um problema dos índios nem de suas comunidades. Ele é um problema posto e resolvido pelo Estado, instância que trata os coletivos sob sua tutela (no sentido lato, isto é, político) dessa forma: quem é o quê, quem não é o quê, é preciso favorecer isso, desencorajar aquilo; punir, premiar, induzir, reduzir, gerir, dispor. Os antropólogos temos que nos posicionar frontalmente contra isso, recusando (“na medida do possível e dentro dos limites da lei”) essa questão como legítima. Temos de trabalhar nesse contexto, pois esse é o contexto que está aí, mas sem com isso ter que trabalhar por este contexto, sem ter de vender nossa alma, e sem ter de acreditar na história da carochinha que eles estão contando, a história de que índio é uma entidade contábil, é algo que se pode contar.
O problema é confundir isso com etnia e etnônimo
Claro. Bem, vamos falar então da experiência ficcional a que me dediquei, ao propor uma definição “jurídica” de “índio”. Tal definição (ver abaixo, em itálico), insisto, é um exercício escolar. Não se trata de um projeto de lei (imaginem), mas de uma tentativa despretensiosa de resposta a colegas que acham que a questão de saber quem e o que é índio pode ter uma resposta outra que aquela que é dada praticamente pelos índios, passados, presentes e futuros.
"Índio" é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal. "Comunidade indígena" é toda comunidade fundada nas relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.
1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais própria da comunidade em questão.
2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:
(a) A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnicas;
(b) A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade.
(c) A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.
Antes de comentar essa definição por assim dizer conjetural, quero resumir em algumas frases obscuras a “linha de raciocínio” que utilizei até aqui e que não vou utilizar daqui para frente, mas que me parece a única tecnicamente correta. Ela não deixa de estar contemplada, de certo (meta-)modo, na terceira dimensão da definição ficcional. Direi então que índio realmente não é isso que eu digo que é nesse texto pseudo-legislativo que escrevi. E não é isso, porque os enunciados de indianidade são enunciados performativos e não enunciados constativos, dependendo portanto de condições de felicidade e não de condições de verdade (no sentido de correspondência com um estado de coisas). Mas, e este é o ponto, as condições antropológicas de felicidade de tal enunciado não são dadas por terceiros. Sobretudo, não são nem podem ser dadas pelo Estado, o Terceiro por excelência. A indianidade é tautegórica; ela cria sua própria referência. Índios são aqueles que “representam a si mesmos”, no sentido que Roy Wagner dá a esta expressão (cf. The invention of culture), sentido esse que não tem nada a ver com identidade; e nada a ver, tampouco, com representação, como está indicado na formulação mesma, deliberadamente paradoxal, da expressão. “Representar a si mesmo” é aquilo que faz uma Singularidade, e aquilo que uma Singularidade faz. Sigamos adiante.
O objeto da definição imaginária que estamos comentando é isso que chamei de “comunidade indígena”. A expressão foi escolhida por ser a mais vaga possível. Na verdade não gosto demais da palavra “comunidade”, canonizada pela teologia da libertação e aproveitada algo hipocritamente pelos governos pós-ditadura. Mas no contexto que me dei, ela se justifica por impedir palavras mais pontiagudas e cheias de arestas, como etnia, tribo, sociedade, nação. A palavra “coletivo” talvez fosse a mais adequada, mas ela é muito especializada, pertence ao universo de uma antropologia mais recente, e os problemas que ela pretende resolver são outros (notadamente, como contornar-ignorar a oposição natureza/sociedade). Não é disso que se trata aqui. Então, mantenhamos comunidade.
Em seguida, cometo cometo a húbris de escrever: “comunidade indígena é...”. Exercício totalmente parnasiano, repito. Pois eu, no fundo do meu coração, não estou nem aí para saber quem ou o quê é comunidade indígena, ou não é. Se, “enquanto antropólogo”, eu terminar por esbarrar em um lugar onde, por acaso, encontram-se índios – com o sentido que a palavra tem na linguagem comum, que é vago e concreto ao mesmo tempo –, isso não me obriga a, nem decorre de, nenhuma definição técnica. Quando eu fui estudar os Araweté eu pensava: “eu quero conhecer uns sujeitos que morem no mato e que usem arco e flecha”. Pois.
O ponto realmente fundamental na escolha da “comunidade” como sujeito da minha definição fictícia é que o adjetivo “índio” não designa uma condicão individual, mas especifica um certo tipo de coletivo. Nesse sentido não existem índios, apenas comunidades, redes (d)e relações que se podem chamar indígenas. Não há como determinar quem “é índio” independentemente do trabalho de auto-determinação realizado pelas comunidades indígenas, isto é, aquelas que são o objeto do presente exercício definicional, ou melhor, meta-definicional. O objeto e o objetivo da antropologia, diga-se de passagem, é a elucidação das condições de auto-determinação ontológica do outro. E ponto.
Enfim, voltando ao texto: comunidade indígena é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros. O “ou” aqui é evidentemente inclusivo: “seja parentesco, seja vizinhança”. Este é um ponto importante, porque ele impede uma definição genética ou genealógica de comunidade. A idéia de vizinhança serve para sublinhar que “comunidade” não é uma realidade genética; por outro lado, colocar “relações de parentesco” na definição permite que se contemplem possíveis dimensões translocais dessa “comunidade”. Em outras palavras, a comunidade que tenho em mente é ou pode ser uma realidade temporal tanto quanto espacial. Em suma, “parentesco” e “território”, para falarmos como Morgan, são tomados aqui como princípios alternativos ou simultâneos de constituição de uma comunidade. Convém sublinhar o caráter não-geométrico desse território: a inscrição espacial da comunidade não precisa ser, por exemplo, concentrada ou contínua, podendo ao contrário ser dispersa e descontínua. Então, (1) comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança, e (2) que mantém laços históricos ou culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.
Introduzo a esta altura a primeira especificação: 1.1. as relações de parentesco ou vizinhança, constitutivas da comunidade, incluem relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso – quer dizer, compadrio – e, mais geralmente, se definem em termos das concepções dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da comunidade em questão. Ou seja, em bom português, é parente quem os índio acham que é parente, e não quem o Instituto Oswaldo Cruz ou sei lá quem vai dizer que é a partir de um exame de sangue ou um teste de ADN. Parentesco inclui aqui a afinidade. Isso é básico, em primeiro lugar, porque as relações de afinidade são, em muitas culturas indígenas, transmissíveis intergeneracionalmente, exatamente como as relações de consanguinidade (falo dos sistemas de parentesco ditos “elementares”); em segundo lugar porque, de um modo geral, a etnologia vem mostrando que a afinidade é o arcabouço político e a linguagem ideológica dominante nas comunidades ameríndias. E por fim, porque há muitos casamentos interétnicos nos mundos indígenas de hoje. Como você cortaria uma família no meio quando o homem é branco e a mulher é índia, por exemplo? Se a comunidade acha que o marido é membro da comunidade, ele é índio, sem mais. No que me concerne, se o marido for um norueguês, mas casou com a índia Potira, e o pai da índia Potira está de acordo, esse norueguês é índio. Assim, as relações de parentesco e de vizinhança incluem laços variados e, sobretudo, se definem em termos da atualização dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da comunidade em questão. Pode não ser o sangue. Pode ser a comensalidade, a vizinhança; isso fica em aberto. Cada comunidade terá uma concepção específica do que são esses “vínculos interpessoais fundamentais", e são essas concepções que devem ser “definitivas” das comunidades, não as nossas.
Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas são evidentemente importantes, pois é bobagem imaginar que se pode definir “índio” na base do preguiçoso princípio sub-relativista segundo o qual “índio é qualquer um que achar que é”. Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante. É necessário trazer para a definição, portanto, a questão de que existia um mundo social pré-colombiano, e que há uma porção de gente no Brasil atual que está ligada a ele. O que quer dizer esse “ligada” é que é o problema, naturalmente. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas. Não tem de haver uma coincidência dessas três dimensões. Eu diria que se uma delas está presente, está “resolvido” o “problema”. Essas condições dimensionais são condições suficientes, cada uma por si. E nenhuma delas é necessária. Quais são tais condições? Uma delas é a continuidade da implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. É a idéia do território tradicional, da Terra imemorial. É impossível não reconhecer a importância disso. Como eu disse, tal continuidade é suficiente, mas não é necessária. Pois não menos suficiente, em particular, é a disposição em conceber a situação presente da comunidade a partir de determinações e de contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação, oclusão e repressão étnicas. Em suma, o índio aldeado, o índio que foi “misturado”, que os missionários e bandeirantes desceram, não pode ser culpado de ter perdido suas referências territoriais originais. Essas comunidades vão deixar de ser indígenas porque seus membros foram trazidos à força de regiões diferentes? — “Bem...desculpem, mas os jesuítas misturaram vocês com índios de todos os lugares”. — “E daí (responde o índio), a culpa é minha? Eu vou ser punido por causa disso? Quero minha terra de volta.” Mas já tem muito branco, há muito tempo, nessa terra? — Então vamos negociar. A antiguidade da expropriação não a faz deixar de sê-lo. O único prazo de validade é a memória.
A outra coisa é a orientação positiva e ativa dos membros do grupo – este é o segundo “critério” – face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio coletivo relevante. Se tomarmos o argumento pela outra ponta, isso quer dizer: ninguém é obrigado a ser índio. Os membros de uma comunidade podem decidir: “nós somos índios, mas não queremos ser; de qualquer maneira, estamos virando brancos.” A noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários mundos indígenas. Ela não quer dizer necessariamente o que nós achamos que quer dizer; ao contrário, o que ela quer dizer é justamente um dos problemas mais complexos com que se defrontam os antropólogos. Há todo um complexo sistema de pressuposições recíprocas em jogo, com pelo menos quatro posições ou orientações típicas: virar branco, virar índio, pacificar o branco, pacificar o índio. Os brancos “pacificam” os índios, os “índios” pacificam os brancos, os índios dizem que estão “virando branco”, há “muitos brancos” querendo virar índio. Uma situação muito interessante. Os brancos lamentam que há vários brancos querendo virar índio e ao mesmo tempo que há vários índios querendo virar branco. Os Yanomami estão querendo virar branco, e os caboclos lá da Pedra Furada, no sertão do Cariri ou sei lá onde, estão querendo virar índio. O mundo está de cabeça para baixo. Os Yanomami deviam continuar a querer ser índios (alguém precisa continuar a querer ser; alguns índios são necessários), e os caboclos deveriam continuar a querer ser brancos, cada vez mais brancos — cidadania, que beleza.
Na verdade essas duas coisas são muito mais complicadas do que se imagina. Os Yanomami querem virar branco, mas isso não é exatamente o que se imagina que seja, e os caboclos lá de não sei onde querem virar índio, mas também não é como se imagina que eles querem que seja. Cabe a nós antropólogos ver toda a complexidade que está por trás de assertivas tão banais como “nós estamos virando branco.” Este é um discurso comum em muitas comunidades indígenas: “nós estamos virando branco”, “os índios estão acabando”. O que parece, entretanto, é que não se acaba nunca de virar branco; e que os índios não acabam de acabar; é preciso continuar a ser índio para poder se continuar a virar branco. E parece também que virar branco à moda dos índios não é exatamente a mesma coisa que virar índio à moda dos brancos. Até que se vire.
Enfim, retomando: “deve” haver uma orientação positiva e ativa do grupo em relação aos produtos característicos da vida comunitária. Rituais, mitos, configurações relacionais mais ou menos reificadas, a própria comunidade enquanto ponto de orientação, pólo de territorialização, e assim por diante. Em vista dos processos de destruição, de redução e de oclusão cultural associados à situação social evocada no item anterior (reduções, descimentos, escravização, catequização etc), tais discursos e práticas não são aqueles específicos da área cultural, no sentido histórico-etnológico, onde hoje se acha a comunidade. Ou seja, os índios podem ser índios e terem uma orientação positiva e ativa em relação ao fundo cultural ameríndio, mas um fundo cultural ameríndio que remete a uma outra região, simplesmente por que a deles foi destroçada. Então, se os caboclos da Pedra Furada importam um xamã wajãpi para ensinar toré, qual o problema? Os antigos romanos importavam professores de grego para ensinar filosofia grega para eles, e ninguém dizia com isso que os romanos estavam deixando de ser romanos. Ou dizia (alguns romanos de fato diziam), mas nem por isso eles deixaram de ser romanos.
Como é o caso dos Tupinambá de Olivença, que chamaram um xamã guarani para ensinar um pagé deles.
Exatamente. Tem uma parábola que Marshall Sahlins conta em seu livrinho Esperando Foucault, que é mais ou menos assim: Há um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive um povo muito interessante, e que há cerca de uns seiscentos anos atrás se achava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a sua cultura ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, epidemias, mudanças climáticas. A partir de certo momento, porém, esse povo começou a se reinventar, com a ajuda de manuscritos, documentos e monumentos antigos escritos em uma língua ou erguidos segundo princípios que eles não entendiam, e começaram a criar uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas ou descricões em velhos escritos, faziam traduções vernáculas de línguas mortas a partir de traduções em outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventavam segredos perdidos inexistentes, tradições esotéricas perdidas... Como se sabe, esse processo, que se passou na Europa ali mais ou menos entre os séculos XIV a XVI, ganhou o nome de Renascimento. O Ocidente moderno principia ali.
O que é o Renascimento? Os europeus — mistura étnica confusa de germânicos e celtas, de itálicos e eslavos, que falam línguas híbridas, muitas vezes pouco mais que um latim mal falado, crivado de barbarismos, praticando uma religião semita filtrada por um equipamento conceitual tardo-grego, e assim or diante — descobrem a literatura e a filosofia gregas via os árabes. Refiguram o mundo grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas uma “Antiguidade clássica” feita de fantasias e projeções do presente. Erguem templos, casas, palácios, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesia grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. Lêem Platão de modos inauditos. Enfim: inventam, e assim se inventam. Como diz Sahlins: pois é, quando se trata dos europeus, chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição. E conclui: alguns povos têm toda a sorte do mundo.
A terceira dimensão, enfim, é a sociopolítica – a primeira era histórica (continuidade), a segunda era cultural (orientação positiva em relação ao fundo cultural); a terceira é sociopolítica. Ela diz respeito à decisão, manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade se constituir como corpo socialmente diferenciado dentro da comunhão nacional — para usarmos essa linguagem empolada e hipócrita. Constituir-se como entidade socialmente diferenciada significa dar-se autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição, isto é, os modos de recrutamento e critérios de exclusão da comunidade. Estamos falando de coisas como “governança” (perdoem a má palavra) comunitária, modalidades de ocupação do território, regimes de intercâmbio com a sociedade envolvente, dispositivos de reprodução material e simbólica... Os índios têm, como diz a lei, direito a seus usos costumes e tradições. Ter direito aos usos e costumes significa ter autonomia para se governar internamente naquilo que não fira os princípios fundamentais da constituição nacional.
Estas reflexões são uma tentativa de criar uma definição a mais larga possível, que reconheça que a reposta à questão de quem é índio cabe às comunidades que se sentem concernidas, implicadas por ela. Não cabe ao antropólogo definir quem é índio, cabe ao antropólogo criar condições teóricas e políticas para permitir que as comunidades interessadas articulem sua indianidade. Nós antropólogos não somos sequer tribunal de apelação. Um caso pitoresco que me contam, dos caboclos da Serra de Baturité que viraram índios por conta de uma ONG de um norueguês e de um padre do Cimi, no meu entender, é um caso marginal, no sentido estatístico e no sentido conceitual. Pois e daí? eu diria. O que isso prova? Se aquela comunidade, de fato, é uma invenção “do mal” (porque pode ser uma invenção “do bem”) então paciência, vamos ver o que nós fazemos com isso; vamos ver, sobretudo, se eles se garantem.
Os antropólogos devíamos nos orgulhar do fato de que o Brasil de hoje está cheio de comunidades querendo ser indígenas. E devemos nos orgulhar, entre outras coisas, porque contribuímos para reavaliar, dar um outro valor, à noção de “índio”. Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.
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