Foucault e o libertarismo
Edson Passetti e Salete Oliveira
“Silêncio.
Estragon: Para fazer direito, seria preciso me matarem, como o outro.
Vladimir: Que outro? (Pausa) Que outro?
Estragon: Como bilhões de outros.”
Samuel Beckett, Esperando Godot
As pesquisas de Foucault atingiram as humanidades de maneira contundente. Não pouparam a segurança que estas imaginaram ter como ciências, e tampouco a aposta do iluminismo no sujeito livre e autônomo, oscilando entre a governamentalidade e a utopia da sociedade igualitária.
Na perspectiva política de Foucault, que acompanha à sua maneira as sugestões da genealogia do poder traçada por Nietzsche, não cabe espaço para totalitarismos. Trata-se de um filósofo e historiador que se encontra no interior de relações de poder e resistências; é um escritor que não se deixa capturar por identidades ou especialização, nem que se acomoda no sábio patamar reservado aos condutores de consciência; é também um libertário demolidor.
História de lutas
Foucault foi um historiador político lidando com o presente, atuando propositalmente em reduções de relações de poder centralizadas e aproximando o intelectual dos problemas imediatos. Ao revirar a noção negativa de poder para mostrar os efeitos de suas positividades, propunha-se a responder como acontecem e repercutem as lutas entre forças. Mas nesta escolha não repousava o aperfeiçoamento de uma situação corrigindo sua anomia. Procurava desassossegar a razão, as instituições, as leis, as soluções políticas sustentadas confortavelmente por projetos e programas de reformas. O poder para Foucault é uma situação estratégica configurada por forças em luta que desencadeiam diversas e indissociáveis resistências.
A análise genealógica do poder não busca o grande começo nem a grandiosidade do gesto inicial que teriam sido distorcidos mais tarde e que aguardam restauração por meio do saber desinteressado em nome da humanidade ou de uma classe social. Ao contrário, ela se ocupa dos baixos começos, ali onde o que se pretende superior foi mesquinho. Como aconteceu no direito. Antes das belas palavras, das declarações e das leis universais o direito ocorre pelos desdobramentos de situações conflituosas.
A genealogia do poder capta a vitória de uma força ou da coalizão de algumas sobre as demais no instante em que declaram sua superioridade particular como universal, lançando mão de arbitrariedades e sagacidades. Ao anunciar a procedência dos grandes valores ela também noticia a emergência dos seus baixos instintos. Afasta-se dos proprietários da verdade, da inabalável razão iluminista e de seu suposto controle sobre as paixões. Não há mais a Idéia ou o Espírito, apenas forças em luta. Não há também uma teoria do poder, mas estudo de relações de poder sob o regime da soberania, da disciplina, dos controles, implicando em captar suas incômodas descontinuidades.
As relações de poder implicam resistências e estas também não ocupam um lugar especial, nem estão reduzidas à expressão de valores superiores; as resistências podem ser tanto ativas e contestadoras, como reativas e conservadoras. Na modernidade e na contemporaneidade, as relações de poder e resistências não cessam, combinando lei, religião, economia, organização, linguagem, pessoas. Elas provocam a aparição de novos costumes capazes de inventar novas tradições, experimentações inusitadas, liberações surpreendentes e incontroláveis, liberdades infinitesimais. As relações de poder e resistências acontecem em diversos âmbitos e encontram ressonâncias, acomodações, contestações e perseguições dentro e fora do Estado. As relações de poder são ascendentes e descendentes, desdenham da legitimidade e encontram-se indissociavelmente vinculadas à produção de saber.
Desta maneira o que acontece no âmbito da microfísica do poder são também produções de saber repercutindo desde resistências locais até efeitos de poder de Estado. A interminável luta por liberdades contra autoridades centralizadas e governos superiores de pais, adultos, hierarquias e Estado escancaram os efeitos das lutas (de causar a vida até a eficácia de causar a morte) e dos supostos refúgios seguros acolhidos nas doutrinas.
Não há um saber desinteressado a favor da humanidade ou de uma classe; todo saber é interessado e procede de relações de poder. Foucault leva, então, o estudante e o pesquisador a entrarem na luta, problematizando instituições inquestionáveis, como por exemplo, Estado de direito ou Sociedade sem Estado, enfrentando nas diversas sociedades a sociabilidade fundada na punição e na recompensa, provocando inquietudes ao experimentar liberdades.
Anarquistas
De fato, os anarquistas contemporâneos começaram a se interessar por Foucault a partir de suas análises genealógicas. Mas, rapidamente, também, captaram os questionamentos éticos que derivam para a afirmação de uma estética da existência na atualidade. Os anarquistas passaram, então, a estabelecer relações entre as sugestões de Foucault desde Vigiar e punir até as suas derradeiras pesquisas que compuseram os volumes 2 e 3 de História da Sexualidade com alguns ditos-e-escritos e cursos que lentamente foram publicados.
Como mostrara desde a aula inaugural no Collège de France, depois publicada como A ordem do discurso, na modernidade, sexo e política foram as principais interdições que acumularam desde saberes anátomo-psicocanalíticas até os disciplinares esquadrinhados em espaços de vigilância e punição. Para os anarquistas, a liberdade sexual arruinando a monogamia burguesa e as experimentações de vida associativista, com base na reciprocidade e em relações federativas, compõem a experimentação da Anarquia no presente em confronto com a era Propriedade comunal, privada, estatal ou mista da modernidade e defendida pelos liberais, conservadores e socialistas.
Para muitos anarquistas Foucault é um pensador inopinado. Chegou junto com as invenções libertárias durante o acontecimento 1968, e, em pouco tempo, passou a ser também companhia de transgressivos jovens estudantes e professores libertários.
O mundo havia mudado mesmo. O intelectual não era mais o cérebro do trabalho manual, nem o diretor de sua emancipadora consciência; as relações de poder não se restringiam mais a redes como na milimétrica descrição de Foucault sobre sociedade disciplinar com sua vigilância panóptica, acoplada aos sutis e escandalosos dispositivos de punição; agora, tomava vulto os fluxos de poder com suas virtualidades, pois a inteligência passava a ser o alvo da produtividade e a democracia o articulador entre a economia e a grande política.
O corpo e a biopolítica deixavam de ser os alvos principais das utilidades e docilidades perseguidas pelas relações de poder e contestada por resistências. A expansão do universo, a ocupação do espaço sideral, a comunicação constante, o fluxo ininterrupto de produtos e serviços, o conhecimento pormenorizado das entranhas do corpo e de sua constituição pelo DNA, levaram, também, o próprio Foucault a se deslocar para uma sociedade que começava a se modificar e que mais tarde Gilles Deleuze chamou de sociedade de controle.
O 1968 desdobrou e deslocou Foucault para múltiplas resistências e para a estética da existência. Os anarquistas, na mesma ocasião, também se desviavam da crença na grande revolução procedente das reflexões e práticas de Mihkail Bakunin para o associativismo de Proudhon, os efeitos do anarco-individualismo, que veio de Max Stirner, problematizando a pertinência do anarco-sindicalismo, que alcançara um contundente efeito na Revolução Espanhola e que tivera grande influência no início do século 20, inclusive no Brasil.
Para estes anarquistas desassossegados Foucault contribui de maneira decisiva, incentivando a volta ao combate às relações microfísicas do poder, rompimento com doutrinas, e aproximação com novas experimentações libertárias. São vários os pesquisadores e ativistas libertários que combinaram Foucault com demais saberes libertários e de outros filósofos anti-universalistas como Salvo Vaccaro, Todd May, Wilhelm Schmitt, Saul Newman, Christian Ferrer, Margareth Rago... Para os demais, como Noam Chomsky, David Graeber e Eduardo Colombo, entre outros, Foucault é uma figura nociva, na medida em que abalroa os anarquismos como condutores de consciência e os identificam compondo com um novo cristianismo.
Foucault, pelo sim e pelo não, assim como o 1968 tornaram inevitável que os anarquistas mostrassem tanto seu lado conservador, como as suas capacidades inventivas. Mas principalmente, ele colaborou para problematizar a expectativa da revolução redentora e o sentido consolador e narcotizante da utopia igualitária. As singularidades anarquistas podem ser descritas em suas atividades de resistências ativas (do Living Theatre às zonas autônomas temporárias) ou reativas, circunscritas ao movimento anti-globalização em que os comunistas e socialistas re-paginados pelo discurso por uma outra globalização capturam os jovens-velhos libertários que, em pouco tempo, transformam-se de associativistas em ongueiros. Alguns anarquistas conservadores, também não admitem anarquismos nas universidades, seguindo as datadas reflexões de Piotr Kropotkin. Contudo, e inevitavelmente, desde o início do século 21, estudantes e professores defensores deste anarquismo se estabeleceram nas universidades, compondo um inusitado anarquismo acadêmico, em que defendem a continuidade da doutrina de Bakunin a Mahkno.
Nu-Sol
Foucault é um filósofo que atravessou a difícil e sólida fronteira iluminista sinalizando para o esgotamento da revolução redentora, a permanência dos pequenos fascismos diários − muito mais perigosos à liberdade do que o grande fascismo de época − e a cruel eficácia das punições. O associativismo libertário, por sua vez, ocupa-se das experimentações liberadoras que funcionam como obstáculos aos efeitos de dominação e sujeição e à violência no âmbito pessoal e social, repudiando a sociabilidade autoritária atravessada pela cultura do medo, ainda que em nome da justiça. Para um anarquista a representação não só é inaceitável como se constituiu em um dos dispositivos mais eficazes do assujeitamento.
Um ponto muito pouco tratado pelos anarquismos contemporâneos, apesar de muito trabalhado pelos velhos anarquistas é o do castigo. Abolir o regime do castigo na associação libertária é uma atitude rumo à formação do anarquista e expressa seu estilo de vida, pois é somente abalando a si próprio que se avança para a constante supressão das desigualdades. Não se trata, portanto, de uma ação inaugural decorrente da revolução, como imaginam os demais socialistas e comunistas, nem o ato de justiça derradeiro na história para o qual se lança mão de um similar regime da vingança.
A educação libertária está adiante dos direitos universais e da eventual reparação de suas injustiças por meio da revolução. Ela ignora o universalismo do direito para firmá-lo na relação bilateral, imediata e restrita a objetos. Com isso, pretende romper com a rede das ilegalidades inerente e fortalecedora do direito moderno, seja em sua versão burguesa ou na socialista autoritária. Foucault notou com precisão, em Vigiar e punir, a estocada anarquista à ordem pautada na razão universal, ao abordar as primeiras resistências ao direito burguês expressas na imprensa socialista operária revertendo a identificação imediata do criminoso com o pobre, o trabalhador, a criança abandonada e o desempregado para associá-la ao proprietário burguês, e de onde emergiu, em 1840, a famosa constatação de Proudhon: a propriedade é um roubo!
Em torno do direito, seus desdobramentos e suas ilegalidades os anarquistas e Foucault também estimulam conversações. Diante da educação pelo castigo atuam como sinais de alerta. E na atualidade, quando se clama cada vez mais por combate à impunidade, eles aparecem indissociáveis. Da perspectiva de Foucault está em questão abordar a emergência das súplicas pela multiplicação de punições por encarceramentos, sentença de morte ou penas alternativas, acobertadas com o nome de tolerância e no limite explicitadas como programa de tolerância zero. Do ponto de vista anarquista se espera ultrapassar a solução medicalizadora ao crime elaborada por Kropotkin, ainda no século 19, em que a prisão deveria ser substituída pelo atendimento psicológico e médico, pois o crime passava a ser compreendido como doença social.
A sociabilidade libertária com base na superação do regime do castigo nas pessoas, não admite mais a esperança científica. Foi o cientificismo no século 19, como mostrou Foucault, que não só reformou e humanizou a prisão, mas foi além, apoiado nas humanidades construiu o conceito de anormal. A ciência passou a ditar e governar o normal e o anormal, segundo suas justificativas acopladas à política. Do ponto de vista da história efetiva; distante das teorias liberal e marxista, bem como da hipótese repressiva do poder, a análise do investimento do governo sobre a vida teve como efeito uma sociedade de normalização cujas procedências longe de advirem da origem grandiloqüente que fixa o normal como anterior ao anormal, expõe a construção histórica do anormal como condição para a posterior emergência do normal. O soberano saber mais uma vez se fortaleceu segundo o governo das forças políticas vencedoras de época, explicitando a historicidade do discurso da verdade. A prisão, então reformada, não deixou de ser cruel, apenas ampliou seu raio de ação, aprisionando burocracia, parentes, comércio ilegal, corpos e desejos. Funcionando como imagem invertida da sociedade passou a informar uma nova e estranha sensação, a de que estamos todos presos! A vida na e da prisão não se esgotou nela. O manicômio foi contornado pela psicanálise. Os internatos cederam lugar aos regimes escolares. Os insurgentes foram organizados em partidos e sindicatos. Investiu-se, enfim, com sucesso, em disciplina, em normalização.
Dentre as diversas minorias identificadas como anormais e perigosas estavam os anarquistas. Eram os iracundos mais perigosos e perniciosos à sociedade como procurou provar Cesare Lombroso. Para ele Marx e os nacionalistas traziam com suas propostas benfeitorias para a sociedade, mas os anarquistas, ao contrário queriam somente a demolição. Era a maneira dos cientistas e juristas de lidar com a radicalidade dos anarquistas, em defesa da sociedade. Eles passaram a ser identificados com criminosos e anormais, principalmente desde o final do século 19, quando os anarquistas italianos passaram a ocupar áreas de opressão violenta, cujo desdobramento levou ao terrorismo tiranicida na Europa. Enquanto os demais setores revolucionários eram gradativamente disciplinados em partidos e vanguardas, os anarquistas radicalizaram suas ações e foram classificados como ameaça à sociedade da época, definição que atingiu até a atualidade. Espera-se que os anarquistas metam medo não só por estarem relacionados ao terrorismo, mas por levarem uma suposta vida libertina. Eles são tidos como a ameaça que atrai desejos. Eles são apenas a recusa à normalidade.
Os anarquistas não são anormais. São perigosos ao provocarem riscos à ordem hierárquica, desigual, violenta e tirânica da sociedade. Eles são um perigo salutar às pessoas e à sociedade, pois é no risco que se inventa a vida. É na coragem de combater o regime dos castigos em si próprio e nos desdobramentos que ele sustenta na sociedade que a anarquia é também uma prática de abolição do castigo.
O abolicionismo penal lida com situações-problemáticas, na maioria das vezes envolvendo infrações cometidas por pessoas jovens e adultas pobres, migrantes e habitando condições de miséria social e pessoal. Nestas condições um anarquista abolicionista penal rompe com o direito universal e com os modelos recomendados e se arrisca ao propor respostas-percursos. Procura, desta maneira, cuidar de cada caso como um caso especial, como ele cuida de si. Prescinde dos pastores (do juiz, do promotor, dos advogados, dos técnicos humanistas, dos funcionários de gabinete e carcereiros orquestrados para proferirem um castigo sentenciado) que zelam pela ordem no rebanho. O abolicionista penal é um anarquista apresentando para a sociedade a experimentação da maneira como ele lida com infrações no interior da sua associação. Nela ele se ocupa com a infração de um jeito análogo ao que Claude Lévi-Strauss encontrou entre populações tribais − consideradas selvagens pelos normais −, evitando expulsar, confinar ou matar, afastando-se da idéia de criar um arquipélago repressivo.
Os velhos libertários como Willian Godwin, no século 18, e o jovem Etienne de la Boétie no século 16, queriam a luta contra com o Um, o soberano. La Boétie perguntava como as pessoas preferem o governo de outrem a viver livre de governos. Anunciava a incessante luta simultânea contra os assujeitamentos e os pastores, fato crucial da cultura contemporânea como registrou Foucault. Godwin invadia radicalmente a pretensão universal do direito moderno e da prisão, também esmiuçados por Foucault. Mas ambos, Godwin e La Boétie, anunciavam uma época que levaria os radicais a acreditarem que no futuro viveria o sujeito livre e autônomo, o verdadeiro Homem. Foucault, na esteira de Nietzsche, veio explicitar que esta pretensão revelava a desertificação do Homem moderno e com isso se afastou da utopia anarquista.
O anarquista evita o poder pastoral, estudado com afinco por Foucault, e que atravessa culturas com eficácia e re-ordenamentos. Ele se recusa a comandar, a se submeter a uma razão superior, como a da ciência, e escapa da inevitabilidade revolucionária herdada de Bakunin ou do anarquismo científico de Kropotkin. O anarquista sempre soube que preso comum e preso político é somente uma distinção de quem defende a continuidade, o recrudescimento ou a reforma do sistema punitivo e prisional. Enfim, o anarquista quando escapa dos efeitos da revolução russa e da sua repercussão na revolução espanhola, sem esquecer as respectivas experimentações, fortalece a sua associação e inventa sua estética da existência.
Foucault e os anarquismos estabelecem tensas situações irreversíveis a quem se dispõe a enfrentar o regime de governo e das grandes e quase imperceptíveis punições. Alertam para o perigo dos fascismos, os encantamentos com a democracia e com os consolos socialistas. Empurram o pesquisador para conhecer outras experimentações e reflexões. Impeliram o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, www.nu-sol.org ), desde 1997, ao encontro com Max Stirner e a enfrentar o poder em ato. Viver sem camuflar o seu poder e as suas relações, contornando os perigos do enamoramento de si − tirânico e fomentador da acomodação na sujeição − e impulsionando para os riscos com os cuidados de si − libertários e provocadores de liberações.
Edson Passetti e Salete Oliveira são professores no Depto. de Política da PUC-SP e coordenam o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP. http://www.unicamp.br/~aulas/pdf3/32.pdfhttp://www.nu-sol.org/
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