sábado, 6 de março de 2010


O GOSTO DA PRÓPRIA CARNE



Edélcio Mostaço

Pensar sobre o legado de Oswald de Andrade quase um século depois de seu surgimento na cultura brasileira é bastante árduo, uma vez que nos encontramos, pelo menos, na terceira geração de críticos que se ocuparam de sua recepção. Mas não vou me reportar a essa dimensão – sempre polêmica -, mas convém lembrar que as diferentes leituras que incidem sobre nosso autor evidenciam, muito mais, as circunstâncias de época em que vieram à luz, além de remeterem às metodologias e pressupostos ideológicos que animam tais leitores.
Para me manter em sintonia com minha colega de mesa, vou invocar as proposições de J. Tynianov em relação à evolução literária. Segundo o formalista russo, o estudo da literatura deve abandonar os laivos psicologizantes, historicistas e “do meio” para considerar outras componentes do sistema. Tomar os movimentos estéticos como séries, alinhamentos que, para serem convenientemente compreendidos, devem se reportar à vida social de onde emergiram. Nessa acepção, o “fato literário” é, para Tynianov, um fenômeno lingüístico e o historiador da literatura deve estar atento, portanto, para sua característica de oralidade. Explicando melhor, evidenciar sua natureza enquanto fala, enquanto natureza de discurso e função no meio social no qual se originou e pretende atingir.
ara exemplificar, um mesmo vocábulo pode surgir em dois movimentos sucessivos ou opostos entre si, em cada um ocupando função diversa. Sua função é que vai dizer, portanto, qual o significado que adquire num e noutro momento. A palavra “índio”, por exemplo, que no romantismo esteve associada à descoberta da terra e seus habitantes, uma invocação lírica dos fundadores surge, no modernismo, cercada de tom polêmico e irônico, senão excludente, cáustico e derrisório.
Outra série de importância na verificação dos movimentos está associada à dominância; quais elementos são dominantes num e não em outro, constituindo sua expressão preferencial. A intencionalidade, outro fator relevante, igualmente impõe sua circunscrição; e, para o formalista russo, deveria ser ela buscada não na subjetividade dos autores mas, com melhores resultados, junto às suas funções construtivas, formais, estruturais.
Tais elementos são suficientes para situar nosso roteiro. Quando nos debruçamos sobre o período anterior ao modernismo não é difícil identificar nos anos de 1888 e 1889 duas datas simbólicas cheias de implicações, a primeira varrendo a escravatura dentre nós e a segunda impondo a república, triunfos da mentalidade positivista que marca o período. Se o realismo e o naturalismo ainda representavam ecos da consciência monárquica, comprometida com o conservadorismo e enredada numa visão ética e moral vitorianas, o parnasianismo, expressão poética que lhe é consentânea, ilustra com perfeição seu perfil preciosista, solipsista e ebúrneo, ultima floração dos oitocentos entre nós.
Será o simbolismo o movimento que, nas primeiras décadas do século XX, irá preparar o terreno para a eclosão moderna, embora, sua divulgação, tenha encontrado fortes resistências de gosto, excessivamente marcado pelas fórmulas parnasianas e pelo viés místico e neo-conservador em que o positivismo se enredou.
Mas aqueles primeiros anos do século apresentam inúmeros desvios, autores que, à deriva, são identificados como pré-modernistas. Na prosa, é o caso de Euclides da Cunha, Lima Barreto, João do Rio, Graça Aranha, Adelino Magalhães, Raul Pompéia. Na poesia, temos a primeira produção daqueles que, em seguida, identificar-se-ão com as linhas de força modernas, notadamente Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Tasso da Silveira, Murilo Araújo, Mário de Andrade.
Mas nosso autor é Oswald de Andrade; e dentre sua produção vou destacar o teatro e seus escritos dedicados à antropofagia. Após seu primeiro retorno da Europa, em 1912, então com 22 anos, Oswald viveu uma crise mística em função do falecimento da mãe, fixada em diversas cartas que trocou com Teodolindo Castiglione. Temas cristãos, do dogma teocrático e circunvoluções da moralidade que cercam o catolicismo são ali deslindados. Nessa época Oswald, junto a um grupo de autores, estava envolvido com o jornalzinho O Pirralho, um hebdomandário satírico e debochado que comentava artes e espetáculos. É o momento em que esboça um drama em três atos, deixado inconcluso, denominado A Recusa, datado de 1913. Entre outros temas – tais como as relações entre homem e mulher e a decadência dos costumes da época – os contrapontos existentes entre a vida vivida em Paris e no Brasil ganham destaque, tornando a obra inserida naquele típico contexto de discussão então vigente entre os valores cultivados de um e outro lado do Atlântico.
Essa crise mística se dissipa logo a seguir, e Oswald, com 23 anos, torna-se crítico teatral do jornal Correio Popular, o que lhe faculta amplo contato com a produção dramática do período, além de assistir muitos espetáculos e flertar com atrizes e coristas. Entre outras grandes personalidades que conheceu ou privou ao longo desses anos de juventude estão Sarah Bernhardt e Isadora Duncan. Em 1916, em co-autoria com Guilherme de Almeida, escreve dois textos dramáticos em francês e jamais vertidos em português: Leur Âme e Mon Coeur Balance. Possuem muitas características que os projetam como simbolistas, tendo ambos como tema a volúvel natureza dos corações femininos. Leur Âme foi dedicado à Wanda, uma bailarina adolescente por quem nosso autor encontrava-se perdidamente apaixonado, mesmo casado com a francesa Kamiá. Um ato da peça foi lido no Teatro Municipal de São Paulo por Lugné-Poe e Suzanne Desprès, segundo ele “com a mais justa indiferença do público e da crítica”.
Na seqüência, em 1917, Oswald escreve novo texto dramático, denominado O filho do sonho, muito provavelmente inspirado pela greve operária ocorrida naquele ano, uma vez que aqui a discussão entre as personagens abandona os eflúvios do coração e enfoca problemas sociais e distintas visões de mundo, como a que opõe Vanni e Marcos, o primeiro próximo das posturas comunistas e em crise religiosa (o que parece evocar o passado do próprio Oswald) e o segundo, articulando nítidas inclinações anarquistas. Antônio e Rodrigo, outra dupla e outra classe social, discutem as vantagens e desvantagens de se viver no Brasil ou na Europa, o que parece retomar o assunto já explorado em seu primeiro texto. O filho do sonho restou inconcluso, teve as páginas finais do manuscrito arrancadas, de modo a tornar impossível saber qual seu final.
Essa primeira fase de Oswald dedicada ao teatro foi constituída, como se nota, com algumas incursões pela dramaturgia, assim como, igualmente, pela militância crítica e teórica; ao lado de contatos com grandes renovadores da cena internacional, como Isadora Duncan e Lugné-Poe, este nada menos que o grande animador do Théàtre de l’Ouevre, em Paris, encenador do genial poeta adolescente autor de Ubu Rei e que havia convulsionado a ribalta francesa, ambos reconhecidos, desde então, como baluartes da mais ofensiva vanguarda. Personalidade inquieta, em sintonia com seu tempo e perspicaz observador das ações humanas que merecessem figurar num palco, Oswald já evidencia, mesmo nessa produção irregular e imatura, duas grandes virtudes para a cena: a economia nos diálogos (em aberta oposição ao padrão simbolista então dominante, de tomar os enredos como oportunidades para longas tiradas pseudo-filosóficas ou solilóquios melodramáticos que com muito esforço alcançavam algum brilho); as cenas curtas, nucleadas em torno do essencial para configurar a ação.
Resta mencionar, ainda nessa fase, seu apreço por Piolin, o palhaço de circo que, através de suas pantomimas, alegrava as tardes de domingo nos pavilhões ou como convidado para os salões da alta burguesia. 1917 marca, como se sabe, o início da arrancada modernista, através da exposição de Anita Malfatti e da série de artigos pela imprensa que enaltecem o “espírito moderno” em detrimento do passadismo, tornando nosso autor um dos principais articuladores da Semana de 22, ponta de lança de um conjunto de mudanças que culmina em 1924.
Parecem concordes todos os analistas do modernismo em dividi-lo em duas fases: entre 1917 e 1924, estágio de afirmação e consolidação das conquistas organizadas em torno dos novos procedimentos; e entre 1924 e 1930, ápice das expressividades contraditórias que ele albergava e que, cada qual em seus parâmetros, produziu os melhores frutos.
Oswald, nesse caso, é destaque nos dois momentos: em 1924 lança o movimento Pau-Brasil, bússola das melhores conquistas adquiridas com o futurismo, o expressionismo e o cubismo; e, em 1928, dá a conhecer o Manifesto Antropófago, a mais abrangente cartografia das relações sócio-culturais do país, a mais radical postura moderna frente à cultura brasileira até então encetada.
Sobre o primeiro momento ele ponderou: “se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo. O primitivismo nativo era o nosso único achado de 22, o que acoroçoava então entre nós” [...]. “A Antropofagia foi, na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro”. Esse primitivismo, já verificado como a emergência do pensamento selvagem, mítico, base do inconsciente coletivo que levava à idéia de assimilação, foi posteriormente aprofundado no período da antropofagia, em busca de um renovado tribalismo para a vida coletiva, quando os mecanismos sociais repressivos devem deixar de vigorar, em prol da liberação das potências do instinto e do domínio, canalizando-as para a atividade criadora, simultaneamente artística e erótica.
As questões evocadas por Tynianov relativas ao uso da língua ganham absoluto destaque nesse contexto. Em Pau Brasil pode-se ler: “o Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. [...] Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.[...] Eruditamos tudo. [...] Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. [...] O trabalho contra o detalhe naturalista - pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. [...] Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.”
Tais pressupostos, no Manifesto Antropófago, tornam-se ainda mais radicais: “Tupi or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. [...] Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-mundi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. [...] Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. [...] A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas.”
Nesse novo estilo de escrita é privilegiada a síntese, o acabamento técnico, a invenção e a surpresa, o abandono do lado doutor e as citações, a substituição do tratado pelo roteiro, a corrupção da gramática e, somando tudo, a percepção da necessidade de novas experiências manejadas como projetos concretistas. Tal foi, de fato, o percurso.
Quanto ao teatro, Oswald já tinha apontado no Manifesto da Poesia Pau Brasil sua reprovação em relação ao teatro de tese e as costumeiras disputas entre “morais e imorais”, explícita recusa aos modelos realistas e naturalistas que ainda infestavam nossos palcos naquela década de 1920; motivo, muito conhecido, da ausência de artistas ligados à cena na histórica Semana. Salvo Piolin, decantado intérprete quer por Oswald quer por Alcântara Machado, nenhum outro homem ou mulher dos palcos teve sua atenção desperta para as novidades trazidas pelo modernismo; à exceção de Álvaro e Eugênia Moreira que, no Rio, comandavam a sazonal experiência do Teatro de Brinquedo.




Ao que tudo indica, O Rei da Vela foi escrito para ser montado, em 1933, no Teatro da Experiência, fundado no ano anterior em São Paulo por Flávio de Carvalho. A peça chegou a ser lida naquela improvisada garagem do andar térreo do Clube dos Artistas Modernos que conhecera, meses antes, a estréia de Bailado do Deus Morto, quase um happening idealizado e conduzido pelo seu mentor. Mas a polícia de Getúlio Vargas estava vigilante e o empreendimento deu com os burros n’água, fechado logo a seguir. De modo que o texto de Oswald permaneceu inédito, até a histórica encenação de José Celso Martinez Corrêa para o Teatro Oficina, em 1967.
Nosso autor tinha, muito recentemente, se convertido ao comunismo. Após longa convivência com Tarsila do Amaral, que lhe facultou em Paris relacionamentos importantes com expressivos artistas da vanguarda internacional, encontra-se agora ligado a Patrícia Galvão, a Pagu, uma jovem explosiva que o incentiva às grandes ações e à fundação do jornal O Homem do Povo. A peça O Rei da Vela é um grande painel sobre o funcionamento da sociedade do dinheiro e as relações econômicas na era do capitalismo colonialista. No texto, a monárquica família do cel. Belarmino está arrasada, vítima da crise do café de 1929, e o aburguesado usurário Abelardo I está em busca de prestígio, razão pela qual a aproximação entre eles é um conluio muito apropriado, capaz de resolver interesses mútuos. “Nosso casamento é um negócio”, alerta Heloisa de Lesbos ao entrar em cena, denunciando sem pudor o caráter dessas relações sócio-econômicas.
Não há tese a ser demonstrada – mas apenas a exposição de um grande painel sobre o funcionamento do sistema da casa; não há luta entre “morais e imorais” - mas apenas ações ditadas pelos costumes ancestrais (caso da família) e os mafiosos métodos de gerência no escritório de usura (caso de Abelardo I), com uma surpresa guardada para o final: após ser roubado e conduzido à bancarrota e ao suicídio por seu estafeta Abelardo II, um socialista que renegou sua classe, o novo casamento é abençoado por Mr. Jones, o americano que está inspecionando as plantations ao sul do Equador, com o alvissareiro beneplácito de “good business”. Na vigência do capital, como aqui demonstrado, nada muda e apenas o dinheiro troca de mãos, salvaguardando o jogo do “rei morto, rei posto”.
É nesse sentido que a engenharia da cena é projetada, através de sínteses eficazes obtidas à custa do acabamento dramático técnico, um dado de invenção e surpresa que formaliza, junto ao espectador, a multiplicidade cubista dos muitos planos aqui enovelados e oferecidos como experiência concreta de uma dimensão sócio-cultural. Não há, sem dúvida, melhor retrato dos jogos de poder vigentes na Velha República que essa criação dramática de Oswald.
No ano seguinte, em 1934, surge O Homem e o Cavalo, uma nova criação que radicaliza ainda mais o painel sobre a realidade brasileira de então – desta vez em perspectiva internacional e reportando-se à obra de Maiakóvski (existem diversas correlações possíveis com o Mistério Bufo). Ao contrário de O Rei da Vela, estruturada em três atos e onde Oswald efetivou, em cada um, uma paródia de estilos arcaicos da cena, aqui observamos uma construção épica, em nove quadros, mais ou menos independentes entre si, unificados pelo tema comum: a marcha para o socialismo. Mais clara demonstração da militância política de nosso autor, nesse período formalmente adepto do Partido Comunista, O Homem e o Cavalo apresenta dezenas de personagens que se impostam à passagem da estratosnave do professor Ícar, realizando um périplo pela Terra.
Após sair do Céu, passar pela Europa e Brasil, a estratosnave aporta no país do socialismo, onde a Voz de Stálin trombeteia as conquistas da Revolução. Logo a seguir segue-se o julgamento de Cristo, talvez o quadro mais blasfemo de toda a peça, onde Verônica exibe Adolf Hitler crucificado numa suástica e Cristo é declarado “o último Deus ariano”. No último quadro, denominado O estratosporto, a nave parte para diversos planetas do sistema solar, numa premonição da futura corrida espacial que se desenhou depois dos anos 1960.
Uma montagem contemporânea do texto pode ainda resultar impactante, não mais pelos conteúdos ideológicos e irreverências de toda sorte que pululam no texto do começo ao fim, mas pelo seu aspecto de teatralidade, de inventividade cênica, seus recursos apropriados para uma encenação em estádio – coisa que, naquele momento parecia impossível mas que, atualmente, está nos planos utópicos do Teatro Oficina.
Segundo recordações de Oswald de Andrade Filho, a peça chegou a ser ensaiada, ou ao menos algumas leituras para tanto foram efetivadas, tendo Oswald e Flávio de Carvalho à frente; mas a produção não se concretizou. Em 1972 o encenador franco-argentino Victor Garcia, com produção de Ruth Escobar, chegou a cogitar sua encenação, mas os cortes promovidos pela Censura inviabilizaram a iniciativa; de modo que, até o momento, o texto permanece praticamente inédito, salvo uma leitura dramatizada de grande impacto promovida por José Celso Martinez Corrêa em São Paulo em 1986.
A última investida de Oswald de Andrade sobre os palcos deu-se com A Morta, em 1937, num momento em que está casado com Julieta Bárbara, musa lírica de sua tessitura. Embora ainda formalmente comunista, mas já seriamente abalado pelo fracasso da Intentona Comunista de 1935 e pelo terror stalinista que varria a União Soviética, nosso poeta idealizou nesse texto um confronto com a arte e sua natureza, as circunstâncias nas quais cultura e arte convivem na sociedade capitalista e pensou, sobretudo, nas fontes de inspiração da poesia. Beatriz, a eterna musa dos poetas (uma tradição iniciada com Dante), aqui surge como ela mesma e como A Outra de Beatriz, duplo que a acompanha como sombra. Ela e O Poeta cruzam três diferentes territórios: o país do indivíduo, o país da gramática e o país da anestesia – arquétipos de situações que parecem minar a criação, estreitar a criatividade, subjugar todas as revoltas, o que motiva que O Poeta, no final, faça tudo arder em chamas: “é o drama do poeta, do coordenador de toda ação humana, a quem a hostilidade de um século reacionário afastou pouco a pouco da linguagem útil e corrente”, declara Oswald no prefácio da peça.
Razão pela qual ele assume uma nova verdade, o compromisso de não abandonar as lutas, “os arrebóis do futuro”. Formulando um espaço que une a cena e a platéia, Oswald inicia o texto com o compromisso do Hierofante, uma espécie de prólogo, onde o mesmo se declara ser a moral da peça, posta antes do final “a fim de que a polícia garanta o espetáculo”.
Vista em conjunto, a obra dramática de Oswald se afigura fora do seu tempo, adiantada demais em relação aos padrões estéticos, técnicos e ideológicos do teatro brasileiro do período. O que, evidentemente, não é um óbice para que sejam apreciados seus valores de referência, suas inovações estruturais e, especialmente, seus procedimentos de construção técnica e artística, muitos anos à frente de Nelson Rodrigues, aquele que nossa crítica mais conservadora premiou com o título de autor moderno. Tais questões de historiografia do teatro brasileiro ainda se encontram num estágio primevo, longe de refletirem as verdadeiras constituintes de nosso passado cênico; cujo melhor exemplo é Qorpo Santo, autor limítrofe que a historiografia ainda mal digeriu e não sabe o que com ele fazer.
Exumando sua função enquanto intelectual engajado, mas também fazendo uma espécie de balanço de uma vida de confrontos, tanto artísticos quanto políticos, Oswald de Andrade irá, daqui para frente, dedicar-se intensivamente ao jornalismo.
Rompe com o Partido Comunista em 1945 e escreve, nos anos vindouros, vários textos relativos à Antropofagia, destacando-se O Modernismo (1949), O Antropófago e a tese de filosofia A Crise da Filosofia Messiânica (1950), além do artigo Um aspecto antropofágico da cultura brasileira — o homem cordial, no qual retoma um tema antes desenvolvido pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Em 1952 escreve uma Introdução à Antropofagia, e dois anos após Do órfico e mais cogitações e O primitivo e a antropofagia, um pouco antes de falecer em 1954.
Essa volta ao tema antropofágico resume, com grande acuidade, a formatação de um círculo de dupla articulação, como a fita de Moebius, ao mesmo tempo artístico e político. Disputando com o movimento Verdamarelo a retomada do índio como matriz da cultura brasileira, as duas correntes, após a Revolução Liberal de 1930, tomam caminhos exatamente opostos: enquanto os antropófagos dirigem-se para a esquerda, os verdamarelos singram para a direita. Reciclada a experiência marxista, Oswald retoma aquele percurso para aprofundar seus sentidos e significados, evidenciando as estratégias então empregadas para repensar o Brasil. O caráter primitivo da alma indígena, o matriarcado, o sentido órfico da existência, a crise da ordem messiânica patriarcal, a recuperação do sentido utópico, seriam as diretrizes da “revolução caraíba”, capaz de nos levar do histórico ao transhistórico, do cronológico ao tempo primevo, da ritualização da violência individual à reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos. Há um sentido proudhoniano nessas considerações, que articulam uma fuga de Deus e do cristianismo como óbices à felicidade, ao mesmo tempo em que vislumbram superar o caráter autoritário do Estado.
Na série de artigos relativos à marcha das Utopias, Oswald examinou diversos movimentos históricos que se abeberaram na fonte cristalina dos sonhos como impulso de criação; para concluir que o ócio, como uma negação do negócio, é o verdadeiro índice ético para essa nova sociedade – numa assaz curiosa antecipação de Herbert Marcuse e Domenico de Masi.
Esse conjunto de escritos evoca idéias de muitos e muitos autores, citados ou glosados, evidenciando que nosso poeta colocou em prática seu ideário comestível, abeberando-se e deglutindo corpos de doutrinas de diversas latitudes e longitudes, verdadeiro festim antropófago no nível intercultural e pós-colonial. Mas experimentou, sobretudo, na própria carne, a voracidade que tal processo pressupõe – afinal, como ele próprio bem sabia, é necessário transformar o tabu em totem.
A aceitação de Oswald longe está de ser tranqüila. Seu amplo projeto antropofágico cultural já recebeu críticas severas, desde Tristão de Athayde, Antônio Candido, Décio de Almeida Prado, Cavalcanti Proença, até as recentes incursões de Roberto Schwarz ; mas também adesões de porte, como as efetivadas por Mário Chamie, Benedito Nunes, Augusto de Campos e sobretudo, Haroldo de Campos, o intérprete maior de seu legado.
Não tenho aqui espaço nem é este o momento de situar os termos das contendas observados nesse amplo debate, que não se restringe apenas às características estéticas do todo cultural como, especialmente, a seu projeto sócio-político de mudanças. O assunto mereceria, por si só, todo um seminário. Mas, para não sairmos daqui de mãos vazias, gostaria de indicar alguns tópicos, colhidos fora da área literária e artística. Num iluminado estudo denominado A Invenção do Cotidiano, o historiador Michel de Certeau desvendou o que chamou de táticas e estratégias empregadas pelas culturas populares para resistir e sobreviver ao massacre das representações imposto pela indústria cultural e demais sistemas coercitivos que sobre elas operam. Suas conclusões nos ajudam a perceber como, através do deslocamento das palavras, reversões de usos e funções dos paradigmas dominantes, reapropriação de provérbios e frases feitas, simulação de aceite e reorientação de gestos impostos, as camadas populares aprenderam, ao longo dos tempos, a conviver com as adversidades. São astúcias milenares, desde sempre incorporadas e praticadas, deglutidas, para ficarmos no vocabulário típico da relação antropofágica.
E o caráter dionisíaco das culturas, a constante erupção do corpo e seus avatares, são privilegiados pelo sociólogo Michel Maffesoli: “estamos, antes, diante de uma potência afirmativa que encontramos, subterraneamente, em todas as estruturações sociais e que, às vezes, se impõe de modo irresistível, como uma imensa onda que não se pode deter. Aqui está um projeto ambicioso: dar conta do ‘dispêndio’ popular. O que era característica da vanguarda, dos artistas, dos gênios solitários e orgulhosos, ramifica-se no conjunto do corpo social. O gozo do presente, o carpe diem, torna-se valor massivo e irrecusável. [...] A luta econômica, a emulação pecuniária, a teatralidade política parecem atestar que nada escapa ao jogo do mundo, que as sociedades são formadas por ele e que leva-lo em conta não é uma posição de esteta, mas o reconhecimento de uma constante que, em diagonal, atravessa todas as realidades humanas. [...] Contraposto ao utilitarismo, o ludismo é o índice mais nítido do querer viver e da perduração da socialidade. [...] Como tenho dito com freqüência, tudo isso é particularmente perceptível no Brasil. E, convém que os intelectuais brasileiros estejam à altura de seu país. Que eles saibam pensar o que é, largamente, vivido”, salienta seu autor no ensaio A sombra de Dioniso.
Enquanto cartografia dessas duas perspectivas, o projeto antropofágico de Oswald de Andrade me parece ser a mais acabada iniciativa intelectual surgida entre nós, não para interpretar o Brasil, mas para reconhecê-lo, instituir sua alteridade, para vivê-lo em plenitude, rente à originalidade que o perpassa em diversos quadrantes.

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