sábado, 6 de março de 2010


Bases para se pensar um conceito de antropofagia

Maria Cândida Ferreira de Almeida ICBV

Um dos primeiros problemas que se apresenta quando tratamos de antropofagia é o da dupla denominação aplicada ao ato de devoração da carne humana – antropofagia e canibalismo. Alguns autores trabalham com uma distinção entre essas palavras, considerando a expressão canibalismo própria para o ato de se alimentar de carne humana, enquanto o uso da palavra antropofagia ligaria o ato a um ritual. É mais comum encontrarmos a antropofagia como a devoração da carne humana e o canibalismo associado ao índio, como um ato de ferocidade, barbárie e selvageria. Mas convém lembrar que, como afirma o antropólogo Marshall Sahlins, o canibalismo “é sempre simbólico mesmo quando ele é ‘real’ ” (citado por:Vilaça,1992:XIX) Desde este ponto de vista, não cabe essa distinção dos dois termos, já que a devoração da carne humana será sempre permeada por uma conotação simbólica mesmo quando o gesto de devorar é decorrente da contingência ou necessidade.


Na maioria absoluta das vezes o canibal será o outro, distante geográfica e culturalmente; até para aqueles que praticam a androfagia, pois eles vêem o seu próprio canibalismo como socializado, ao contrário do canibalismo do outro, ou seja, dos deuses e dos inimigos, que praticariam um canibalismo “selvagem”. Assim, o antropófago será, principalmente, o bárbaro, aquele que está distante da civilização que detém o discurso enunciador.


Oswald de Andrade reverte essa ordem, ao se apresentar como antropófago, propondo a antropofagia como gesto relacional próprio da cultura brasileira, na qual, muitas vezes, as diversidades se apresentam como inconciliáveis e o outro, como uma distinção, uma alteridade, é interno, formado por parte da população ameríndia, afrodescendente, oriental, asiática e mesmo europeus de imigrações mais recentes do século XX.


Oswald buscava a produção na devoração e, para tanto, recorreu à idéia de “alto” e “baixo” canibalismo, que já estava presente na obra do sermonista barroco Padre Antônio Vieira(1951:430). Essa distinção, mais do que tratar de “o que” pode ser comido, refere-se a “como” se dará a devoração. A destruição dos habitantes do Novo Mundo pelos colonizadores foi descrita por Vieira e Oswald como “baixo canibalismo”; já o “alto canibalismo”, para Vieira era aquele praticado ritualmente pelos índios e que podia ter uma relação análoga com o ritual da comunhão. Oswald vai denominar “alto canibalismo” o seu gesto inaugural de pensar a cultura brasileira a partir da devoração de toda alteridade.


Na obra de Oswald, particularmente ao cunhar o conceito de antropofagia, está evidente a influência da leitura de Sigmund Freud. Um ponto levantado pelo psicanalista, em seu texto Totem e Tabu, “a apropriação das qualidades do objeto”, é apontado por muitos críticos como marca dessa influência. Em Freud, tal apropriação refere-se à devoração do pai, e esse foi o mote do modernista para proclamar seu “alto canibalismo”, um canibalismo produtivo, já que a morte do pai leva à distribuição das mulheres entre os filhos e, portanto, a sua reprodução, contra um “baixo canibalismo”, restrito ao âmbito da destruição.


Oswald de Andrade criou o conceito de antropofagia, empenhou-se em ampliá-la, retomando, contínuas vezes, o tema, e buscando pelo resto de sua vida sua formalização e divulgação. Não podemos dizer que essa fosse uma idéia única, original, mas a apropriação do canibal por uma cultura dita periférica para afirmá-lo positivamente inverteu o estruturante conflito bárbaro x civilizado de muitas das construções epistemológicas do pensamento ocidental.


Oswald continua abordando, reiteradas vezes, o tema da antropofagia, mesmo assim ele não considerava a antropofagia como um projeto acabado e apelou para que os estudiosos da cultura o fizessem. Em seu apelo final dirigido a nós, pensadores americanos, para que fosse dada continuidade ao desenvolvimento da antropofagia, o crítico fala da antropofagia como um “conceito de vida próprio do primitivo” a ser apropriado para o nosso modo de vida tecnizado e americano: o conceito de antropofagia foi delineado pelo escritor em oposição ao modelo “salvacionista civilizado” criando um lugar discursivo e de atuação para o americano. Assim, a antropofagia não aparece somente como um modo de analisar a cultura americana, mas também como uma atitude antropofágica, um modo de atuar a partir de outros paradigmas, que não aqueles colocados pela tradição grego-romana próprios da cultura européia.


A obra de Oswald terminou presa nas linhas da crítica literária; ele foi mais reconhecido como poeta, ensaísta e dramaturgo modernista do que como militante político. Contudo, com o advento dos chamados “estudos culturais” de tradição britânica que, dentro e fora do Brasil, abalaram os estudos literários, propondo uma ampliação tanto dos temas abordados quanto das estratégias para fazê-lo, a crítica literária se desprendeu de sua subserviência ao texto estritamente considerado “literário” para abranger mais e mais contextos se tornando crítica de cultura. Assim, com a transdisciplinaridade proposta pelos “estudos culturais”, podemos servir, em outros espaços discursivos, o “biscoito fino” oswaldiano. Este trabalho, por exemplo, visa destacar uma vertente da obra oswaldiana que privilegia a abordagem dos comportamentos intersubjetivos que são pertinentes ao contexto sulamericano e que é própria da atitude antropofágica, destacando, por fim, a relação das elites políticas e de pensamento com a língua popular e com a própria concepção de canibalismo.


Quero aqui retomar de Oswald de Andrade o seu “Manifesto Antropófago” (1928) e os textos em que tratam dessa proposta, destacando a perspectiva anti-cêntrica, anti-exclusivista, anti-universalista, projetando “a revalorização do homem natural que se produz contra os quadros esclerosados do homem histórico, do homem civilizado, do homem vestido, enfim, do homem cartesiano.”


Desde os movimentos de Vanguarda do século XX, do surgimento da antropologia como disciplina, das primeiras guerras coloniais, da emergência da má consciência não me parece possível idealizar uma única versão para indivíduos agrupados geopoliticamente sob uma só fórmula identitária, o que vemos são grupos de indivíduos, tribos, subjetividades. Não quero, portanto, tratar do universal, em nenhum dos seus disfarces: catolicismo, democracia, ocidental, cultura elevada, valor e seu pseudônimo, bom-gosto. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” , e nela está contida o movimento de devoração incessantemente, em um “alto” ou “baixo” canibalismo.


A anti-hierarquização, expressão mais impactante da antropofagia, freqüentemente apaga-se na afirmação de que o ritual antropofágico exigia uma vítima valoroza. Segundo essa interpretação, só os grandes guerreiros eram devorados; trazendo essa vertente (não se poderia devorar o covarde) para a metáfora canibal, definiu-se que não seria passível de devoração o que se considera inferior: como a língua criada pelo carcamano , a música sertaneja, a literatura de massa, etc…etc…etc…etc… e como a cultura européia contém tradicionalmente maior valor agregado, termina-se propondo sua devoração como preferencial. Muitos dos nosso intelectuais do século XIX, como Silvio Romero e Machado de Assis, propunham de maneira explícita ou velada: não somos europeus, mas se misturarmos nossa expressão autóctone e afrodescendente com os maneirismos europeus estaremos no caminho para o progresso e para nos tornarmos civilizados.


Em seu movimento de antropófago, Oswald ampliava as possibilidades de devoração numa apologia clara a toda diferença: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” Pensemos neste aforismo a partir da idéia de que “o que não é meu” pode ser tomado em relação a pessoa de Oswald de Andrade, então, o que não é meu é o baiano, posto que ele é paulista; o feminino, posto que ele é homem; o proletário, posto que ele é burguês; o burocrata, posto que ele é artista; por aí poderíamos seguir numa multiplicidade que, direcionada para dentro do território brasileiro, seria imensa e, em uma tão grande proporção quanto, se a seta indicar para fora dessa geografia. Para Oswald, como sintetizou Augusto de Campos: “(a) operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem, do valor oposto, em valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu”(Campos, 1978:122).


Com a apologia da devoração da diferença, Oswald ultrapassa a concepção freudiana que limitava o canibalismo à devoração de objetos com qualidades desejáveis. Tal noção do canibalismo, por ser largamente difundida, provoca pelo equívoco de que só, e somente só, os bravos guerreiros eram devorados; contudo, no ritual tupinambá que inspirou o modernista, covardes, mulheres e crianças, seres mais frágeis, também foram vítimas sacrificiais. Na Revista de Antropofagia, a devoração do “inimigo” ou do contrário aparece em um texto intitulado “O homem que comi aos bocadinhos”, assinado por João do Presente (seria Oswald?). A cada frase do “homem”, do tipo, “Viver por outrem viver às claras”, que desagradava seu interlocutor suscitava como resposta uma mordida, até que ele termina todo devorado, tal como os peixes, pois morreu “pela boca” por causa de sua fala chavão: “O coitado é positivista, e talvez por isso estava com a carne mesmo no ponto de ser comida. E eu comi.”( Presente,1928:4). No editorial do primeiro número da Revista de Antropofagia, “Abre-Alas”, o mesmo que trouxe o “Manifesto Antropófago”, Antônio de Alcântara Machado afirmava quanto ao que seria devorado:


“Não o índio. O indianismo é para nós um prato de muita substância. Como qualquer outra escola ou movimento de ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo os dedos. Pronto para engolir os irmãos”.


A noção de canibalismo poderia ser resumida na frase: Nós comemos o incomum, como uma transcrição daquela de Oswald: “Só me interessa o que não é meu”; ampliando a idéia da constituição de um eu-americano, produzido na devoração de toda e qualquer alteridade. A idéia de antropofagia seletiva, que propõe a devoração somente daquilo que se considera superior, fica descartada; a antropofagia oswaldiana coaduna com a dos próprios Tupinambá, grupo indígena que a praticava, cuja vontade interminável de ser vingado torna o canibalismo também interminável e não-seletivo. Não é o objeto da devoração que será classificado, mas a própria devoração que se define como “alta” ou “baixa”, ou seja, o gesto acabado em si mesmo, de pura violência e destruição do “baixo canibalismo”; ou o gesto produtor do devir, da diferença, da multiplicidade, da incorporação do “alto canibalismo”.


Transpondo a premissa oswaldiana para o campo do desejo, Suely Rolnik afirma que “antropofágico é o próprio processo de composição e hibridação das forças/fluxos, o qual acaba sempre devorando as figuras da realidade objetiva e subjetiva e, virtualmente, engendrando outras”. Para Rolnik, a antropofagia seria um princípio organizador de um modo específico de subjetivação:


“um modo antropofágico de subjetivação se reconheceria pela presença de um grau considerável de abertura, o que implica numa certa fluidez: encarnar o mais possível a antropofagia das forças, deixando-se desterritorializar, ao invés de se anestesiar de pavor; dispor do maior jogo de cintura possível para improvisar novos mundos toda vez que isso se faz necessário, ao invés de bater o pé no mesmo lugar por medo de ficar sem chão.”(1996:19)


Rolnik proclama, na multiplicidade proposta por Oswald, os desdobramentos infinitos do sujeito, como uma “guerra contra a perpetuação dos gêneros”, tal como se constituem atualmente, que pode ser tomada também como uma guerra contra a produção de identidades estanques. O tema canibalismo requer a percepção de que tratamos dos “habitantes dos devires” que se constituem numa relação ambivalente de destruição e produção, e que sua recorrência requer um olhar para as intensidades do devir.


Silviano Santiago ressalta um aspecto fascinante da proposta de Oswald: a ruptura com a noção de tempo determinista e linear que implica uma assimilação do outro hierarquicamente, e, ainda, leva ao recalque de seus valores. A hierarquia hipervalorizada impõe às produções periféricas uma visão de que essas estariam em eterno atraso e não teriam possibilidade de originalidade. Foi contra as duas decalagens, a de tempo e a de espaço, que a atitude antropofágica se irrompeu, propondo uma nova compreensão do movimento da História, um movimento que atravessa o fluxo evolutivo e retorna ao princípio, ao “matriarcado de Pindorama ”, construindo outra direção, um novo fluxo. Silviano Santiago privilegia o aspecto “irracionalista” da atitude antropofágica tantas vezes refugado por correntes intelectualistas brasileiras .

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