Uma viagem entre o real e a realidade
Limbo
Francisco Bosco
O homem navegava na valeta. Seu sorriso beatífico assegurava que nada mais era necessário, mas seu amigo, de pé diante dele, instava: "Vem, vem, a felicidade está além, a dois passos, vem até a esquina da rua. Coragem, amigo, diz às tuas pernas que satisfaçam o teu pensamento". O outro, porém, com o espírito relaxado, nonchalante, pedia apenas que o deixassem em paz, pois "a margem do desgosto desapareceu suficientemente por trás das névoas benéficas; nada mais tenho a pedir ao céu do sonho".
O agente de tamanha graça fora o vinho, das bebidas alcoólicas, talvez, a mais amolecente, pois torna tenros corpo e espírito. Seu dom é mesmo o da graça, no sentido exato da palavra: suprime o esforço, suspende as resistências. Do quê? Da realidade. Com efeito, a anedota acima, contada por Baudelaire em sua comparação entre o vinho e o haxixe, toca no centro da questão. O vinho, como os alcoóis de modo geral, opera dentro da realidade, amaciando-a, afrouxando as cordas em que todo sujeito, mais ou menos neurótico, vive cotidianamente amparado e enlaçado. A realidade protege - do Nada - e oprime (o inferno é o outro). O álcool a dilui, dissipa sua autoridade, cobre com algodões, "névoas benéficas", sua excessiva claridade. Abre-se aí uma distância dentro da realidade, e a margem que fica para trás é a do desgosto da própria realidade. Essa é a ação positiva do álcool, the power of positive drinking, como disse Lou Reed. Como todas as forças, o álcool também está submetido à lei dialética; suas ações maléficas são o revirar-se desse mesmo princípio de abrandamento da realidade, quando levado ao excesso: a perda progressiva do compromisso com o princípio da realidade, no alcoolismo, ou as atitudes que infringem demasiadamente as balizas morais a que prestamos contas uma vez a realidade retome as rédeas. Caso banal da ressaca moral.
Dois paradigmas
Mas não nos afastemos do centro. Não inaugurei esse pensamento com o célebre texto de Baudelaire por acaso. Essa primeira parte dos Paraísos Artificiais compara dois agentes, o vinho e o haxixe, duas forças a desencadear processos fundamentalmente diferentes. É aqui que quero intervir: penso que a diferença em jogo reside no modo como esses dois agentes alteram a relação do sujeito com a realidade, e esses dois modos permitem, por sua vez, estabelecer dois grandes paradigmas, em que se pode alocar cada droga, de acordo, como disse, com sua maneira de alterar, no sujeito, a experiência da realidade.
Assim, os alcoóis todos se situam no campo do abrandamento da realidade (e no limite, no alcoolismo, num abandono das negociações com o princípio de realidade; à vigência, incontrastada, do princípio do prazer, chama-se precisamente vício). A cocaína pertence ao mesmo paradigma. Sua alteração da experiência da realidade não produz os mesmos efeitos que o álcool: ela acelera, dispara, mecaniciza - mas se trata ainda de uma modificação dentro da realidade. A cocaína não suaviza a realidade, mas energiza o sujeito de tal forma que ele se sente um pouco acima dela. Sua aleivosia vem daí: cada vez que seu efeito diminui, o sujeito, desabando de seu pedestal de pó, ingere outra fileira para subir novamente, e assim durante horas; quando tudo se acaba, nota-se, como no célebre samba, que "pra subir você desceu", e agora deve enfrentar uma temporada a uns 500 metros abaixo do nível da realidade, onde a angústia é proporcional à velocidade e à profundidade da descida. A cocaína tem um espírito maligno de prestamista: empresta euforia a juros exorbitantes. E não há como escapar ao credor. Como sentencia a outra canção, que lhe imita a voz triste, é só "monotonia da loucura e morte".
O álcool cobre de algodões ou lubrifica a realidade, para diminuir sua aspereza. O sujeito se sente mais desimpedido. A cocaína lança-o numa montanha-russa para cima e para baixo do nível normal de sua realidade. São drogas da realidade.
Mas há outro paradigma, outra família de drogas. Essas não são drogas da realidade. Justamente, são drogas (o haxixe, o LSD, o chá de cogumelos, a ayahuasca) que atacam, questionando-a, revelando sua ilusão, a realidade. "O vinho torna bom e sociável", descreve Baudelaire, mas "o haxixe é isolante". Nessa diferença se situa o âmago da diferença que desejo delinear. A realidade é por excelência social; ela é o conjunto, complexo, contraditório e imensurável, das representações de uma coletividade. As drogas da realidade são, consequentemente, as drogas da sociabilidade. Ingere-se-as para melhor se relacionar com o outro. Mas as outras drogas, as "isolantes", não. Muito mais radicais, elas lançam sobre o outro a dúvida quanto à sua própria existência. É nessa dúvida que se passa toda a experiência.
Voltemos a Baudelaire, pois tudo está lá, basta saber ler. "Os sentidos tornam-se de uma finura e de uma acuidade extraordinárias", o sujeito se surpreende em meio a uma "estupefação geral de todo o vosso ser". Por quê?
Deslocamento do sujeito
Que se diga de uma vez: essas drogas, atacando a realidade em sua própria existência, deslocam o sujeito como que para fora dela. Ora, a rigor, fora da realidade é o real. E é por isso que muitos usuários de drogas dessa espécie, por meio do uso intenso e extenso, acabaram passando de vez para o outro lado, psicotizando, perdendo o contato com a realidade. É o momento em que Arnaldo Baptista procura um comandante para pilotar seu disco-voador. Mas, em casos de menor radicalidade, o usuário se vê "como que" fora da realidade. A realidade se lhe aparece como uma ilusão, mas, finda essa experiência, retomará sua existência sólida, incontestada, natural.
Durante a experiência, o sujeito vê a realidade à sua frente, como um teatro. Ele, contudo, se mantém consciente; "é certo que conservais a faculdade de vos observardes", mas, justamente, trata-se de uma hiperconsciência da realidade, isto é, de uma consciência daquilo de que normalmente somos inconscientes, por nela estarmos imersos. O sujeito não perde sua linguagem, não perde o simbólico, mas é como se o simbólico se descolasse de si mesmo. Pode-se então ver o simbólico, ver o outro. É isso, creio, que um usuário de LSD estava a dizer quando contou que pôde segurar seu ego junto à cintura, como quem segura um capacete. Uma distância se abre. O corpo pode ser percebido, em sua totalidade, como um efeito de neuroses. Suspensa a alienação da realidade, pode-se sentir a neurose fisicamente. Assim, além da realidade e aquém do real, como que consciente ao quadrado, flutuando entre duas impossibilidades, a experiência do sujeito se desenrola numa espécie de limbo.
Esse limbo é um lugar de extrema sensibilidade, como descreve Baudelaire, precisamente porque suspende a realidade. A realidade automatiza; é o que reconhecemos habitualmente, por mais extraordinárias que sejam suas operações internas (como a da arte, por exemplo). Mas, suspensa, a realidade cede lugar à estranheza absoluta, à "estupefação" que é o seu próprio espetáculo como precária invenção. Então, não é algo na realidade que é estranho, uma parte sua qualquer que escapa à gramática habitual. Mas é a própria realidade, em sua totalidade, em seu princípio, que é estranha, abolido seu caráter de natureza. Nessa estranheza absoluta, os "sentidos tornam-se de uma acuidade extraordinária", mas, ao mesmo tempo, "sobreabundantes a alegria, o bem-estar, também são imensamente profundas a dor e a angústia". Sim, tudo isso gira no mesmo vórtice, pois a suspensão da realidade é o teatro e o vazio, o milagre e o caos. A realidade revela-se uma mentira: um homem sensato "parece-vos o mais doido e o mais ridículo de todos os homens" -, mas uma mentira necessária. Para além dela é a verdade, isto é: o nada.
REVISTA CULT -
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